Nos 50 anos do PS, apego-me à esperança de que seremos sempre anterianos
Nos 50 anos do PS, pergunto-me se não está na altura de o partido revisitar essa matriz anteriana e proudhoniana. Não para se depurar nas suas águas matriciais mas para assumir um socialismo liberal como “inspiração teórica predominante”, sem temores infantis de ser olhado de esguelha pelas esquerdas proclamatórias e acrimoniosas.
No plano das ideias, que é simultaneamente o plano que perdura e se ajusta aos desenvolvimentos da história, o Partido Socialista português é tributário da social-democracia alemã na versão moldada por Willy Brandt. Em 1959, no Congresso de Bad Godesberg, o SPD de Brandt rescindia com o marxismo ortodoxo e abdicava de professar verdades últimas para se apresentar como “o partido da liberdade de espírito”. Ao perceber a indisponibilidade do povo para imolar o presente em nome de um qualquer paraíso adventício, o SPD tornou-se um partido do povo e o povo escolheu-o para governar. Ainda governa. Nos anos 70, quase não havia partidos da família socialista na Europa ocidental que não tivessem feito análoga evolução e não preconizassem, em vez da derrocada do capitalismo, um máximo de liberdade e um máximo de igualdade, como então se dizia.
O “Bad Godesberg” do Partido Socialista português deu-se em 1986, com Vítor Constâncio. Foi então que o PS removeu da Declaração de Princípios de 1973 a referência ao marxismo, considerado, até aí, como a ‘inspiração teórica predominante”. O PS convertia-se oficialmente ao socialismo reformista de Bernstein e Léon Blum. Não se podia esperar menos de um partido cujo lema era – e é – “socialismo em liberdade”. O lema de Mário Soares e o axioma que explica porque, graças ao fundador do PS, Portugal é hoje uma democracia pluralista.
Para compreender o éthos do PS português é preciso recuar a um tempo bem anterior a 19 de Abril de 1973, ao socialismo anteriano, que era, como o da geração das Conferências do Casino, proudhoniano. Tratava-se, como escreveu António Sérgio, de “um socialismo de consciência, um socialismo idealista”. Mas, mais significativo, foi Sérgio ter escrito que, “para Antero, o verdadeiro socialismo é liberal”, um socialismo “criador e gradualista (…), pela tenaz iniciativa de indivíduos livres, e não pelo poder centralizado do Estado”. Sérgio acalentava este ideário, ou não teria confessado aos socialistas reunidos no banquete do Primeiro de Maio de 1947: “apego-me à esperança de que sereis sempre anterianos”.
Nos 50 anos do PS, pergunto-me se não está na altura de o partido revisitar essa matriz anteriana e proudhoniana. Não para se depurar nas suas águas matriciais mas para assumir um socialismo liberal como “inspiração teórica predominante”, sem temores infantis de ser olhado de esguelha pelas esquerdas proclamatórias e acrimoniosas.
A ideia-chave do socialismo liberal é a da socialização da liberdade. O próprio Proudhon escrevia que “não se trata de matar a liberdade individual, mas de socializá-la”. É preciso capacitar os mais pobres para exercer a liberdade. A dificuldade está em libertá-los simultaneamente da pobreza e da excessiva sujeição à máquina do Estado centralizado. Confundindo liberdade com individualismo, os acólitos do liberalismo económico agarram-se à obsessão de encolher e enfraquecer o Estado. Mas, contrariamente ao estereótipo, um Estado Social omnipresente e intervencionista pode reforçar a autonomia individual. A manifestação terrena disso é o chamado individualismo de Estado, pedra-de-toque da social-democracia sueca. Aí, “o Estado Social foi inscrito na narrativa da comunidade nacional, enquanto pedra angular da ‘casa do povo’” (Wojtek Kalinowski).
Claro que colocar o foco numa liberdade socializada – recíproca, colaborativa – também convoca os militantes do PS a combater as novas modalidades de fragmentação individualista levada a cabo pelos que hoje pretendem retificar a história e a linguagem no mercado das identidades.
Só que, para se reinventar, o PS tem de ousar pensar contra si mesmo. Tem o dever político e moral de promover uma reflexão de natureza doutrinária, de não se fechar ao mundo das ideias – inclusive das ideias incómodas – a pretexto de uma urgência do presente ou em nome de um pragmatismo sem bússola. Tem de parar de encarar a discordância como afronta e os desalinhados como desafeiçoados. Não basta proclamar um pluralismo sem arestas e sem atrito. Permitir que o PS descaia para uma comemoração acomodatícia dos seus cinquenta anos é o pior dos augúrios.
Mas perguntamo-nos como se pode hoje pensar alguma coisa em Portugal em cima de um redemoinho de factoides e de um espaço mediático em carne viva, onde nada dura para lá de umas poucas horas. Eis a questão. Uma questão vital não só para o PS como para o próprio regime democrático português.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico