A histeria reivindicativa
Nas redes e nas televisões, o comentariado, em perpétuo rodopio sobre si mesmo, desfila embriagado pelo sobressalto social e pelo ópio da indignação, encostando os megafones à vozearia para amplificar o ruído e ilibando-se de qualquer dever de serenidade, pedagogia ou moderação. É o seu contributo para a ingovernabilidade.
Há um momento nos contextos de crise em que as reivindicações setoriais, das razoáveis às irrazoáveis, se somam numa cacofonia ingerível. É em cima desse momento que o país hoje oscila. Simplesmente, oscila o nosso como oscilam muitos outros. O panorama repete-se por quase toda a Europa. A elisão desta realidade europeia no nosso espaço público explica, em parte, a hiper-susceptibilidade às reivindicações, venham elas de onde vierem, e porque é hoje tão difícil encontrar uma opinião moderada quanto uma agulha num palheiro.
Razão tinha Eduardo Lourenço quando retratou a natureza ambígua da nossa relação com a Europa: uma mistura de distanciamento e de pertença. Ou só se fala dela, ou não se fala dela. Mas, por estes dias, é o silenciamento que tem feito escola em Portugal quando se analisa o agravar das condições de vida devido à inflação e às repercussões da invasão da Ucrânia. É verdade que se noticiou amplamente a insurreição dos franceses contra dois anos suplementares de vida ativa. Mas alguém avistou nas notícias, até agora, um mapeamento do protesto social nas democracias congéneres da nossa? Com uma ou outra exceção, há um mal-estar social partilhado com os nossos parceiros europeus, com idêntica sintomatologia e análoga expressão nas ruas e no espaço público.
Após quase quinze anos de sucessivas crises, especialmente castigadoras para os menos favorecidos, e de respostas europeias desadequadas, insuficientes ou tardias ─ somente invertidas na fase da pandemia ─ seria quase insólito que esse mal-estar continuasse por exteriorizar.
Só que, no momento atual, não há quem não reivindique e quem não peça. Todos os desejos têm de ser atendidos e têm de o ser já. E têm de o ser na sua plenitude, porque todas as concessões parciais ou parcelares são insuficientes. O caso dos professores é sintomático: o Governo satisfez várias reivindicações de há décadas sem que isso tenha sido valorizado pela classe professoral. Tenho dúvidas, aliás, de que a maioria dos portugueses tenha presente essas concessões quando se pronunciam sobre as greves intermitentes.
Nas redes e nas televisões, o comentariado, em perpétuo rodopio sobre si mesmo, desfila embriagado pelo sobressalto social e pelo ópio da indignação, encostando os megafones à vozearia para amplificar o ruído e ilibando-se de qualquer dever de serenidade, pedagogia ou moderação. É o seu contributo para a ingovernabilidade.
Aqueles que, não há muito, professavam o credo da responsabilidade orçamental, são em muitos casos os mesmos que hoje dão gás a cada demanda que apareça no horizonte e se prestam a ventríloquos de cada nova hipérbole sobre a situação dos serviços públicos.
Do lado do maior partido da oposição, não há propriamente novidade, pese embora o espalhafato tribunício a que se vem prestando e que a ninguém convence. Afinal, na sequência da crise internacional de 2008, o PSD especializou-se em nacionalizar cada crise e a deliberar como se o país fosse estanque ao contexto europeu e global.
Para aqueles setores da sociedade e da política portuguesa que afirmavam, com certa volúpia, que o PS era o partido do despesismo, quão indigesto deve ser o equilíbrio financeiro alcançado por governantes socialistas, que nunca conseguiram igualar. Um osso particularmente duro de roer para ex-governantes que fizeram do virtuosismo financeiro o seu único guião, mas, à época, alijado das preocupações sociais que hoje dizem professar, com toda a empáfia. Durante anos, não falavam senão excitadamente nas famigeradas agências de rating. Mas quando as mesmíssimas agências subiram a notificação do país, desafeiçoaram-se das agências de rating. Quando perceberam que o partido que garante boas contas é o PS, renegaram as boas contas. Acusavam o PS de irresponsabilidade orçamental. Hoje acusam-no de ser excessivamente responsável. Chamavam a atenção para o peso da dívida pública. Hoje, por sinal, não se ralam com a descida da dívida pública. Mas, perante a miríade de reivindicações e exigências que implicam o aumento da despesa, ainda não se viu nenhum com a coragem de defender o aumento do défice e da dívida pública, porque, evidentemente, os recursos do país não são inesgotáveis e dependem, em boa medida, de folgas orçamentais para continuarem disponíveis – e logo numa altura em há estremecimentos no sistema bancário mundial.
O cheiro a demagogia empesta o ar quando se pretende sugerir que quaisquer reivindicações que fiquem por satisfazer só o ficam por arrogância ou má vontade do Governo. Não há dúvida de que os professores foram prejudicados nas suas carreiras e moídos por um sistema de colocação que os transformou em caixeiros-viajantes. Mas a justiça de uma reivindicação não decorre instantaneamente da constatação de um prejuízo. Na vida pública, no domínio do comum, uma reivindicação é justa não só quando pretende reparar uma injustiça, mas também quando é proporcional, conscienciosa e atendível.
O interesse geral do país não é o mero somatório da multitude de interesses setoriais. Mas o sacrifício dos interesses setoriais é mais que certo uma vez sacrificado o interesse geral do país.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico