A grande distração
Em plena terceira vaga da pandemia, que nos atingiu com brutalidade, a eleição presidencial merece uma reflexão. Neste momento, apenas conheço projeções: uma elevada abstenção eleitoral (que teima em persistir, apesar de se temer que pudesse ser pior) e, quero acreditar que devido a ela, uma subida eleitoral significativa da extrema-direita populista e antidemocrática (10-14%). Porquê tanto desinteresse pela democracia? O medo do contágio? Não me parece! Estavam garantidas condições de segurança sanitária. Uma campanha eleitoral frouxa, a que acresce a certeza da reeleição do atual presidente da República? Não pode ser, pois todos somos suficientemente maduros para perceber que o não exercício do nosso direito-dever de votar permite que aqueles que o fazem decidam por nós. Basta fechar os olhos e imaginar o que aconteceria se só os eleitores de um partido extremista, populista e profundamente antidemocrático fossem às urnas.
Assim, só tenho uma explicação. Uma grande distração acerca do que verdadeiramente esteve em jogo nesta eleição. Foi muito mais do que a eleição do chefe de Estado. Foi mesmo a medição do pulso à nossa democracia e perceber se está ameaçada pela consolidação de um partido de extrema-direita populista, xenófobo e racista: o Chega, personificado no seu líder, André Ventura. Um partido que segue a velha receita que outros recuperaram em geografias mais ou menos próximas da nossa: um líder aparentemente forte e eloquente, que se apresenta como o virtuoso que vai salvar o “povo” das malfeitorias dos “outros” (do “corrupto” do político dito do sistema, do “criminoso” que pertencente a uma minoria, do “pobre” que é subsídiodependente), a causa de todos os males; o recurso sistemático à desinformação, à mentira e a uma retórica artificialmente redutora de questões complexas, confundindo o eleitorado, induzindo-o em erro, fomentando o medo e cavalgando nele sem escrúpulos; um discurso fraturante e tributário da lógica debilitante do “nós” (os “de bem”) e “eles” (“os bandidos”) que, alavancado pelas redes sociais e certa Comunicação Social, gera ódio, mina a coesão social e compromete os valores estruturantes da sociedade. O combate a forças que atentam contra os nossos princípios fundacionais e civilizacionais faz-se, também, pelo exercício consciente do nosso direito-dever de votar. Não querendo utilizar o lugar comum “a história repete-se”, apenas alerto para as eventuais consequências da nossa irresponsável inação. Recordo apenas os recentes crimes da extrema-direita alemã contra minorias e políticos, de Direita ou de Esquerda, defensores de direitos humanos – hoje, a maior ameaça à segurança daquele país- ou a insurreição violenta, de 6 de janeiro, no Capitólio, instigada por Trump. Queremos mesmo correr o risco de, por tamanha distração, um dia acordar em ditadura? É que depois não vale a pena chorar sobre o leite derramado.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Constança Urnano de Sousa, Jornal de Notícias, 25 de janeiro de 2021