Imigrantes, população prisional e um combate de vale-tudo
A percentagem de condenados estrangeiros é de 12,9%, e não de 20%, como afirmou André Ventura. Em 2012 era de 18,56%.
“Portugal é nosso” e “não podem comer gatos nem cães” foram respetivamente o grito de ordem da manifestação contra a imigração organizada no Porto pelo Chega e um dos destaques de André Ventura, já no palco. Se o primeiro parece inspirado pelos urros de adolescentes em bando nas suas primeiras saídas à noite, eufóricos e de garrafa na mão pelas ruas das “suas” cidades, já a frase de Ventura que apela ao afeto dos portugueses pelos seus animais de estimação vem assinada por Trump e todos nos recordamos bem dela. Mas Donald Trump ganhou as eleições nos Estados Unidos apesar do ridículo e Ventura conhece a força do discurso do “nós contra os outros” e o poder das fotos de gatinhos nas redes sociais. Avultam por isso, pelo menos numa certa lógica, as razões para que opte, sem tergiversações, por um discurso cada vez mais populista e alheado da complexidade das coisas. Mais indiferente à realidade e por isso mais alienado.
Haverá, porém, uma outra causa mais próxima e porventura mais influente na radicalização do discurso do Chega: um Governo de centro-direita que escolhe encostar-se ao discurso anti-imigração e que anuncia operações policiais para combater perceções de insegurança (numa problemática invasão de espaços de autonomia das polícias, porque se ao Governo cabem as grandes opções de política-criminal, é apenas às polícias que cabem as decisões sobre operações concretas, com base em juízos técnicos, operacionais e de necessidade) empurra cada vez mais Ventura para as redes do ringue e para um combate de vale-tudo.
Se tanto Luís Montenegro como André Ventura associam imigração a insegurança a criminalidade, há apesar de tudo diferenças de tom nos seus discursos. O primeiro-ministro não chega ao ponto de dizer expressamente que há mais crimes por causa dos imigrantes, preferindo, isso sim, fundar em meras perceções de insegurança as suas opções político-criminais. Deixa de importar o que é. Passa a interessar o que parece ser. Quando passa a ser “aquilo que parece” a determinar as respostas punitivas do Estado, escancaram-se as portas a injustiças, desigualdades e perseguições arbitrárias. Mas um governo minoritário, apostado sobretudo na sua própria sobrevivência, tende a sobrevalorizar as perceções, acreditando que serão elas, no final do dia, a definir o sentido dos votos. O líder do Chega, no tal combate de vale-tudo, sobe a parada. A ele deixam de lhe bastar as perceções, isso é para os brandos, agora quer dados empíricos que retratem mesmo a realidade. Por isso, na manifestação do Porto o seu discurso trouxe números: “30% dos que foram detidos são estrangeiros e 20% dos que estão presos são estrangeiros”.
O problema é que os números que trouxe para retratar a realidade não correspondem, mais uma vez, à realidade. Segundo os dados disponibilizados pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, em 31/12/2023, o número total de reclusos condenados era de 9538 e o número total de condenados estrangeiros era de 1233. A percentagem de condenados estrangeiros é de 12,9% e não de 20%, como afirmou André Ventura. Ao contrário do que vem clamando o Chega, ao aumento da população de imigrantes em Portugal não vem correspondendo o crescimento da representação de estrangeiros entre a população prisional. Em 2012 a percentagem de condenados estrangeiros nos estabelecimentos prisionais portugueses era de 18,56%. Onze anos volvidos, baixou para 12,9%.
Todos os presos são estrangeiros? (algumas especificidades do encarceramento de estrangeiros em Portugal) é o título do artigo que no final de 2018 publiquei na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, significando que a prisão tem sempre uma nota espacial de banimento, de exclusão, por implicar uma proibição de viver com os outros, de viver aqui. Num certo sentido, todos os reclusos são, por isso, estrangeiros, porque todas as instituições totais sobre as quais escreveu Goffman são um mundo à parte. Todavia, os duplamente estrangeiros do nosso sistema prisional, apesar de não serem mais do que eram em 2012, continuam a ser, com frequência, especialmente estigmatizados e desfavorecidos nas suas possibilidades de ressocialização.
| Devemos reponderar a excessiva representação de estrangeiros na prisão preventiva
A universalidade dos direitos fundamentais, inscrita na nossa Constituição, deve levar-nos a reponderar a excessiva representação de estrangeiros na prisão preventiva (ainda que decrescente quando comparada com o início do século) e o regime da pena acessória de expulsão, que pode ser sujeito a benfeitorias. É com isso que devemos preocupar-nos, porque a única forma de procurar evitar que os combates de vale-tudo culminem sempre com o sangue vertido dos mais frágeis é puxar o debate pela manga para o ringue da defesa dos direitos humanos.