50 anos depois, finalmente o debate
No dia em que o Parlamento debate os direitos das pessoas com deficiência, antecipamos algumas das propostas que o PS leva a discussão
Ao fim de 50 anos de democracia, a Assembleia da República vive um momento decisivo no reconhecimento dos direitos humanos centrados nas pessoas com deficiência. O debate potestativo agendado pelo PS colocou, pela primeira vez, o Parlamento português a discutir, de modo integrado, exclusivo e responsável, a deficiência enquanto questão central de igualdade, cidadania e direitos fundamentais. Rompe-se, assim, com o modelo médico-assistencialista e afirma-se, de forma clara, uma abordagem baseada em direitos.
A iniciativa apresentada pelo grupo parlamentar do PS, agendada no âmbito do Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, trouxe a debate e votação o maior pacote legislativo alguma vez apresentado nesta área. Um conjunto coerente de propostas interseccionais que visa consolidar direitos conquistados, responder a falhas estruturais persistentes e travar retrocessos que têm vindo a ser anunciados e defendidos pelo Governo e pelos partidos que o sustentam. Perante os sinais de recuo, este debate convoca a sociedade para impedir a perda de conquistas que resultam de décadas de mobilização cívica, política e institucional.
Pela primeira vez, Parlamento, Governo e sociedade civil são chamados a uma reflexão conjunta sobre estas matérias, numa perspetiva de correção estrutural do sistema e de reconhecimento sistémico de direitos. A força desta iniciativa reside precisamente na sua capacidade despertar a consciência coletiva e de convocar responsabilidade política e ação pública para a mudança de paradigma.
Além de inédito, o debate abre espaço para uma análise e metodologia de trabalho mais exigente e informada. Questões que, em pleno século XXI, ainda são tratadas de forma fragmentada e superficial começam finalmente discutidas com a profundidade e latitude necessárias. Ainda assim, apesar da sua relevância, estes temas permanecem aquém da visibilidade que merecem – e de que necessitam – no espaço político e mediático.
Ao longo destas cinco décadas, Portugal conheceu avanços decisivos no reconhecimento dos direitos das pessoas com deficiência, sobretudo nas duas últimas. A esmagadora maioria desses avanços teve a assinatura do Partido Socialista: a consagração constitucional do dever do Estado; a ratificação da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência; a implementação do regime jurídico da acessibilidade e das respetivas normas técnicas aplicáveis ao ambiente construído, à comunicação e ao digital; a criação do sistema de atribuição de produtos de apoio; a estruturação do sistema nacional de intervenção precoce na infância; o estabelecimento de quotas de emprego nos setores público e privado; entre muitas outras medidas de políticas públicas.
Neste percurso, destacam-se a Prestação Social para a Inclusão – a mais relevante reforma de combate à pobreza setorial – e o Modelo de Apoio à Vida Independente (MAVI), concretizado através do Serviço de Apoio à Vida Independente (SAVI). O SAVI, enquanto conquista ainda embrionária, pretende assegurar dignidade, autonomia e liberdade de escolha. Contudo, desde a sua implementação, chegou a pouco mais de 1000 pessoas.
O caminho está longe de concluído e, hoje encontra-se sob ameaça de retrocessos inaceitáveis. O Governo prepara-se para impor condições de recursos – permanecendo por clarificar a forma como serão operacionalizadas – que restringirão o acesso a um serviço que deveria ser gratuito e universal. Subordiná-lo à capacidade financeira das famílias significará regressar a um modelo assistencialista e institucionalizador que a democracia já deveria ter superado definitivamente.
O Sistema de Indicadores de Políticas de Inclusão do ISCTE avaliou os impactos da deficiência na dinâmica familiar e conclui que 68,8% dos inquiridos referem ter sido prejudicados na progressão da sua carreira profissional, por ter sido responsável pelo cuidar. Adicionalmente, 64,7% indicam que pelo menos um membro da família reduziu a carga horária de trabalho ou optou por um regime de tempo parcial para assegurar os cuidados à pessoa com deficiência. Em síntese, estes dados tornam evidente que não é aceitável continuar a transferir para as famílias o custo — financeiro, profissional e emocional — da deficiência.
As redes familiares são decisivas, mas não podem substituir a obrigação do Estado de garantir direitos equitativos e condições de vida dignas a todos os seus cidadãos. Pelo contrário: as famílias devem ser reconhecidas como parte do problema público e, por isso, como destinatárias legítimas das políticas e dos apoios que concretizam esses direitos, em vez de serem tratadas como o último recurso de um sistema insuficiente. À perspetiva da família, soma-se a perspetiva da própria pessoa cuidada. A pessoa que se vê totalmente dependente, sem autonomia e liberdade de decidir sobre a sua própria vida, condicionada na sua dignidade.
Os direitos humanos não têm preço e essa a verdadeira discussão que se levanta com a associação de condição de recurso ao SAVI. A empregabilidade também está em risco com a já anunciada diluição do regime de quotas de emprego: por um lado, a redução do limiar mínimo de incapacidade para acesso (de 60% para 33%); por outro, uma alegada “flexibilização” que, sem medidas de equidade, compromete a sua eficácia enquanto instrumento de justiça social. Na prática, passa a ser possível cumprir a norma de forma meramente formal, sem assegurar emprego digno e estável.
Segundo o relatório de 2025 do Observatório da Deficiência e Direitos Humanos (ODDH) do ISCSP, no setor privado, 68% dos trabalhadores com deficiência têm mais de 45 anos e apenas 11,9% são jovens até aos 34. Isto sugere que os dados poderão estar, em parte, a refletir pessoas integradas nos quadros, que adquiriram incapacidades associadas a doença ou ao envelhecimento, não correspondendo necessariamente a situações de deficiência.
Este enviesamento pode agravar-se com a alteração que o Governo se prepara para implementar, ao alargar o universo elegível sem salvaguardas de equidade, distorcendo ainda mais a leitura dos resultados e reduzindo a eficácia das quotas enquanto instrumento de correção de desigualdades. O Mecanismo Nacional de Monitorização da Implementação da Convenção, realizou um estudo no qual inquiriu mil pessoas entre os 18 e os 65 anos. As respostas revelam que a maioria da população portuguesa considera legítimo e desejável que o Estado invista muito mais em políticas de acessibilidade, educação inclusiva, empregabilidade, produtos de apoio e serviços na comunidade, designadamente de assistência pessoal. A sociedade acompanha, falta apenas a decisão e visão política.
Perante esta realidade, o pacote legislativo apresentado pelo PS constitui o arranque de uma resposta reformista necessária:
- A consagração definitiva do Modelo de Apoio à Vida Independente no sistema de proteção social, garantindo o reforço do SAVI sem condição de recursos e sem contribuições familiares;
- O regime de promoção e garantia da acessibilidade universal nos edifícios, serviços e habitação públicos, assente em planeamento plurianual, financiamento estável, equipas técnicas e mecanismos de fiscalização;
- A criminalização da esterilização forçada, enquanto violação grave da dignidade da pessoa humana e dos direitos reprodutivos, associado a um sistema de monitorização e de planeamento familiar;
- A criação de um regime jurídico para estudantes com necessidades educativas específicas no ensino superior, para promover o aumento destes estudantes e a sua qualidade de vida em contexto académico;
- O alargamento do acesso à antecipação da pensão de velhice por deficiência, a partir dos 60% de incapacidade;
- O reforço do emprego apoiado em mercado aberto;
- Um processo extraordinário para eliminar as pendências nas juntas médicas que continuam a bloquear o acesso a direitos básicos.
A este conjunto juntam-se duas resoluções: uma relativa à produção e atualização de dados sociodemográficos — indispensáveis para conhecer o número real e as características desta população — e de indicadores públicos nas áreas da formação e do emprego; outra referente à garantia do voto acessível e universal, assegurando autonomia e igualdade no exercício de um direito constitucional.
Este debate não pretende encerrar um caminho; pretende impedir que ele seja interrompido e, pelo contrário, alargá-lo, lançando bases para o seu aprofundamento. As propostas de natureza interseccional constituem o ponto de partida de um trabalho que terá continuidade e deverá abranger muitos outros temas no âmbito da deficiência.
A qualidade de uma democracia avalia-se pela capacidade de proteger quem enfrenta desigualdades estruturais. No caso das pessoas com deficiência, cada retrocesso legislativo representa uma violação das obrigações internacionais do Estado português e agrava um quadro em que, no contexto europeu, Portugal continua entre os países que menos investem nesta área.
Segundo os últimos dados do Eurostat, compilados pelo ODDH, Portugal destina apenas 1,49% do seu Produto Interno Bruto à proteção social das pessoas com deficiência, enquanto a média europeia é de 1,88%. O debate é inédito e constitui um marco na história da democracia portuguesa. Não pode esgotar-se num momento singular: deve inaugurar uma agenda pública contínua e exigente.
