Uma revisão constitucional de continuidade
A Constituição da República Portuguesa, em vigor desde 25 de abril de 1976, é, ainda hoje, quase 50 anos volvidos, um texto moderno, muito avançado em matéria de direitos fundamentais e de separação de poderes, cuja natureza compromissória permitiu a criação e desenvolvimento de um Estado de Direito democrático livre, justo, pluralista e solidário.
Assim, determinando a Constituição que a mesma pode ser revista pela Assembleia da República decorridos cinco anos sobre a última revisão ordinária e tendo sido aberto um processo de revisão constitucional por outro partido, o Grupo Parlamentar do Partido Socialista (GPPS) entendeu que se justificava interromper o período de estabilidade constitucional que se mantém desde 2005 para atualizar e alargar o catálogo de direitos fundamentais, adaptando-o à evolução da realidade social em áreas fundamentais como o ambiente, a transição digital e o aprofundamento do Estado social.
Salientaria, por isso, os seguintes pontos: a consagração da erradicação da pobreza, da defesa do ambiente e do combate às alterações climáticas como tarefas fundamentais do Estado; o alargamento dos direitos digitais, em especial o direito ao esquecimento e garantias efetivas contra a intrusão digital; o reforço dos direitos fundamentais dos trabalhadores, incluindo a salvaguarda do montante e condições de pagamento dos salários (tão relevante no passado recente quando foram impostos cortes salariais) e o alargamento da escolaridade obrigatória e gratuita ao ensino pré-escolar e secundário e não apenas ao ensino básico.
Prevê-se ainda que compete ao Estado adotar medidas de prevenção e combate à violência doméstica e de género, dando expressão constitucional ao combate a este flagelo social.
No âmbito da defesa do ambiente — esse desafio coletivo do qual depende a nossa sobrevivência — definem-se os objetivos de desenvolver um modelo de economia circular, de utilizar fontes de energia renováveis e de promover o bem-estar animal. Nesta matéria acrescenta-se ainda o direito de acesso à água potável e ao saneamento básico — tornando-se assim Portugal o primeiro Estado europeu a consagrar este direito humano essencial.
Finalmente, no que respeita aos serviços públicos (prestados diretamente pelo Estado ou por privados com obrigações de serviço público), estabelece-se pela primeira vez que todos têm direito aos serviços de interesse económico geral em condições de universalidade, igualdade e equidade (fornecimento de água, de saneamento, de energia, de transportes coletivos urbanos, de telecomunicações, de correios, entre outros). E, na senda de um Estado verdadeiramente solidário, consagra-se a responsabilidade social dos agentes económicos e a função social da propriedade.
O projeto do GPPS procura também resolver dois problemas colocados por circunstâncias recentes: prevê-se a possibilidade de confinamento de pessoa com doença contagiosa grave ou relativamente à qual exista fundado receio de propagação de doença ou infeção graves, com garantia de recurso judicial urgente, bem como a possibilidade de utilização de meta dados pelos serviços de informação, mediante autorização judicial, quando esteja em causa a proteção da defesa nacional e da segurança interna.
Nestas, como noutras matérias, com abertura ao diálogo profícuo e à construção de entendimentos no quadro parlamentar, sem prejuízo das linhas vermelhas que decorrem da recusa pelo GPPS de qualquer alteração que ponha em causa a matriz identitária da Constituição e do nosso regime político: um Estado de Direito democrático assente na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhado na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
Cientes do consenso geral que existe em torno da Constituição, esta é um projeto de revisão constitucional de aprofundamento e continuidade.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Alexandra Leitão, Jornal de Notícias, 20 de novembro de 2022