Aperfeiçoar a Constituição reforçando direitos fundamentais
Tendo a última revisão constitucional ocorrido em 2005, Portugal atravessa um dos mais longos períodos de estabilidade do seu constitucionalismo bicentenário, apenas superado pelos 33 anos que separaram o primeiro (1852) e o segundo (1885) Atos Adicionais à Carta Constitucional.
Não sendo esta estabilidade um valor absoluto (outros países oscilam entre a revisitação frequente dos textos constitucionais da Alemanha, França ou Itália e a escassíssima ocorrência de revisões da vizinha Espanha), deveria, pelo menos, convidar a que se mantivesse o entendimento de apenas se desencadear uma revisão em momento propício à realização de ponderação e reflexão alargadas. A inesperada disponibilidade manifestada pelo segundo maior partido com assento parlamentar para seguir o impulso da extrema-direita, quebrando este consenso, tornaram a realização de um processo de revisão inultrapassável, levando todos os partidos a marcar presença.
Não sendo o tempo que vivemos especialmente oportuno, nem se vislumbrando uma necessidade urgente de introdução de alterações institucionais (interrompendo-se mesmo a reflexão que as
Assembleias Legislativas das Regiões desenvolvem sobre a sua autonomia), é, no entanto, possível identificar no domínio dos direitos fundamentais um leque de matérias em que um aperfeiçoamento da Constituição é possível e onde um alargamento da proteção dos cidadãos é desejável — a proteção dos dados pessoais, por exemplo, evidencia bem a vantagem de atualizar o catálogo de direitos, liberdades e garantias.
Sendo no texto constitucional que o Estado social cimenta as suas fundações, um dos pontos de partida para as propostas que o PS apresenta passa precisamente pelas matérias que podem beneficiar de proteção e estabilidade acrescidas por via da sua constitucionalização. Merecem destaque a gratuitidade do ensino secundário e do pré-escolar e a promoção da literacia digital, a
inclusão da medicina paliativa e reprodutiva na garantia do direito à saúde, a autonomização de um direito à alimentação acessível e de qualidade, a proteção dos grupos vulneráveis na realização do direito à habitação ou a inscrição do combate à violência doméstica como tarefa do Estado.
Adicionalmente, o projeto pretende aprimorar o equilíbrio que a Constituição promove na vida económica, valorizando a função social da propriedade e a responsabilidade social das empresas, reforçando direitos dos trabalhadores e assegurando o acesso de todos aos serviços de interesse económico geral em condições de universalidade e equidade.
No plano ambiental, encontramos outro núcleo de temas que aconselha a uma revisitação das funções do Estado, enfatizando a prioridade ao desenvolvimento sustentável, à descarbonização da economia e à redução da pegada ecológica, inscrevendo na Constituição a preferência pelas energias renováveis e pela promoção da mobilidade acessível. É um terreno em que a atualização do texto se impõe, seja através da consagração de forma pioneira do direito de acesso à água potável e ao saneamento básico, seja através da previsão do bem-estar animal entre os valores a prosseguir pela república.
Finalmente, decorrendo um processo de revisão, torna-se igualmente possível discutir as respostas a problemas que os últimos anos nos colocaram. Num dos casos, o do acesso pelos serviços de informações a metadados, Portugal permanece um dos poucos Estados da União Europeia sem um quadro jurídico-constitucional que habilite expressamente a recolha de elementos relevantes para lidar com ameaças à segurança interna e externa. No outro, respeitante às exigências que a gestão da recente pandemia evidenciou, haverá que traçar um equilíbrio entre a criação de mecanismos que permitam salvaguardar a saúde pública, sacrificando o mínimo da liberdade individual, assegurando a tutela judicial indispensável, e evitando recorrer a mecanismos de exceção ou de emergência, os únicos que até aqui se encontravam ao dispor dos governantes.
Aberto o caminho, deverá, pois, ser no aperfeiçoamento e robustecimento da proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos que a revisão se deverá focar, alargando o debate e construindo compromissos alargados.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Pedro Delgado Alves, Jornal Público, 19 de novembro de 2022