A democracia ciclotímica
A par da nevrose político-mediática, há um país perplexo com a forma como a dissolução da Assembleia da República desaguou no espaço público.
No mês de fevereiro, 70% por cento dos portugueses inquiridos numa sondagem pronunciaram-se a favor da conclusão do atual mandato governativo em 2026, não obstante a avaliação negativa do desempenho do Executivo. A par da nevrose político-mediática, há, portanto, um país perplexo com a forma como a dissolução da Assembleia da República desaguou no espaço público. Pode um mecanismo tão extremo ser discutido com tanta displicência e voluntarismo ou ser objeto de tão desarrazoada inquirição jornalística sem originar patologias no nosso regime democrático? Afinal, há quem fale e escreva como se essa prerrogativa do Presidente da República só precisasse de atender a uma oscilação de humor ou às flutuações das sondagens.
Com efeito, no dia em que uma maioria absoluta colhida nas urnas for abortada por razões de segunda ordem, como as que são hoje aventadas, o voto dos portugueses cessará de ser o sustentáculo do exercício do poder democrático, terraplanado por um qualquer limiar aritmético ou instinto político. Seria o início de uma nova fase da democracia portuguesa: a democracia ciclotímica.
Acontece que a democracia não é o regime político dos humores. É uma “relojoaria fina”, como a definiu Sérgio Sousa Pinto numa lúcida entrevista ao Público. Dissolver a Assembleia da República nos termos hoje debatidos equivale a escangalhar o relógio da estabilidade política e a deter o pêndulo da escolha soberana do povo português. É por demais evidente que tal acontecimento afetará o nosso sistema político-partidário de forma perene.
Constatado o nosso niilismo constitucional quanto às pré-condições da dissolução, o ato é puramente político e remete em exclusivo para o sentido de oportunidade do Presidente e para a sua avaliação discricionária. A omissão de razões objetivas para a dissolução é uma excentricidade do regime constitucional português. Como nota Jorge Bacelar Gouveia, “não deixa de ser bem irónico que a esmagadora maioria das Constituições dos Estados de Língua Portuguesa, influenciadas pela Constituição Portuguesa de 1976, tenham superado o seu sistema de inspiração, melhor resolvendo este problema pela fixação de condições para a dissolução parlamentar operar” (A Dissolução da Assembleia da República, Lisboa, Almedina, 2007).
Seja como for, a hipótese da dissolução da Assembleia não pode ser publicitada por antecipação, como instrumento de pressão ou de chantagem. Porque esse exercício de antecipação fragiliza as instituições e desequilibra a normal correlação de forças dos órgãos de soberania de que é suposto ser a derradeira válvula de escape. Há uma contradição flagrante em admoestar o Governo para que execute os fundos do PRR ou responda adequadamente à crise inflacionária e, ao mesmo tempo, tolher a iniciativa e a liberdade governativas ao trautear em frente às câmaras a toada da dissolução.
O Presidente, desinquietado pela direita mais indigente de que há memória, não subtrai a arma da dissolução aos olhares concupiscentes. Embora se afirme avesso ao uso de força letal, ele não deixa de levar a mão ao coldre para mostrá-la. É por isso que, mesmo quando o Presidente dissipa essa possibilidade, a comunicação social se sente autorizada a reiniciar a contagem decrescente.
É difícil crer que o Presidente não tenha consciência de que ao aceitar discorrer sobre a dissolução e ao projetá-la especulativamente em datas vindouras, ele está a fazer dela uma realidade adiada. Uma finalidade em vez de uma excecionalidade. Com isso, o Presidente passou de referencial de estabilidade a referencial de instabilidade. Para repor a sua autoridade e prestígio políticos, só tem dois caminhos possíveis: ou dissolve de uma vez a Assembleia da República ou esconjura de uma assentada o fantasma da dissolução.
O segundo caminho tem a seu favor uma indiscutível estabilidade parlamentar – com duas moções de censura rejeitadas no espaço de nove meses. O primeiro franqueará as portas a um longo período de volatilidade e fugacidade governativas, de assanhamento parlamentar e polarização da sociedade civil.
Numa altura em que o espectro de um ataque termonuclear assombra os nossos pensamentos à conta do tirano Vladimir Putin, a metáfora da bomba atómica é um tanto inconveniente. Apesar disso, alinhemos por um instante nesse registo metafórico para recordar que a detonação atómica liberta vastas quantidades de radiação. A radioatividade perdura no ambiente. A exposição a doses perigosas é certa. Podem acontecer mutações. A descontaminação pode levar décadas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico