A litania das reformas estruturais
Nos nossos dias, uma vasta clique de loquazes reformadores de bancada pede não só “reformas estruturais” como reformas “urgentes”. Ora, se há coisa com que as reformas não se compadecem é com a tirania do presente.
A litania das reformas estruturais continua tenazmente alojada no debate político nacional. É todo um subgénero político-jornalístico, com um apostolado que oficia a missa reformista na certeza de com ela esconjurar o mal da Terra. Mas, debulhado o palavreado, a colheita é rala. Hoje, as reformas estruturais confundem-se com o credo do liberalismo económico: reduzir os impostos, afrouxar a função regulatória dos poderes públicos e emagrecer o Estado.
Curiosamente, o reformismo começou por designar o socialismo não-revolucionário, cuja doutrina, inaugurada por Bernstein em finais do século XIX e apurada, entre outros, por um Léon Blum, reputava de utópica a derrocada do capitalismo e outorgava às reformas a capacidade de operar transformações reais em benefício dos trabalhadores.
De acordo com uma dicotomia estabelecida, em 1933, por Henri de Man, havia, por um lado, as “reformas de repartição”, que redistribuíam a riqueza por via fiscal, e, por outro, as “reformas estruturais”, que correspondiam, grosso modo, às nacionalizações e à planificação democrática da economia.
Por aqui se percebe como nos faz falta uma tipologia e uma teoria das reformas. Deve uma reforma responder a uma demanda social e entrar em ressonância com ela ou deve ser mera emanação da razão económica e declinar-se como exercício de autoridade? Será suficiente uma práxis reformista ou deve haver um éthos da reforma, um entendimento mútuo entre quem governa e quem é governado? Uma maioria eleitoral, mesmo que absoluta, é caução suficiente para reformar ou é preciso angariar um consenso que vá além disso? Como conceber reformas na esfera nacional quando estas decorrem, em larga medida, de reformas instruídas a partir das instituições europeias?
Tal carência teórica não nos impede de estranharmos que aqueles que advogam “choques fiscais” ou curas de emagrecimento do Estado, maquilhadas de reformas estruturais, sejam amiúde os mesmos que vêm acusando o Governo de timidez nos pacotes de apoio às famílias e às empresas face à tormenta inflacionária – a ecoar acusações já verbalizadas aquando da resposta à pandemia. Por sinal, aqueles que almejam o alívio fiscal querem ao mesmo tempo que esse alívio coexista com mais despesa pública – e com mais investimento público. São ainda esses os mesmos que, tantas vezes ao arrepio do que disseram e propuseram no passado recente, menosprezam a prudência orçamental do Governo, a qual nos resguarda de algum agravamento da situação externa, risco que ninguém no seu perfeito juízo pode desdenhar.
Nos nossos dias, uma vasta clique de loquazes reformadores de bancada pede não só “reformas estruturais” como reformas “urgentes”. Ora, se há coisa com que as reformas não se compadecem é com a tirania do presente. É uma contradição exigir que se governe para além do presente imediato e ao mesmo tempo exigir que tudo frutifique no presente imediato.
No meio deste pandemónio opinativo que quer tudo e o seu contrário, há uma acusação especialmente sonora, que é a de que os governos do PS não fazem – ou não são capazes de fazer – reformas estruturais.
Se a pedra-de-toque de uma reforma estrutural é a sua inscrição na longa duração, a sua durabilidade, não há como não concluir que a transição para um modelo civilizacional que rescinda com a queima de combustíveis fósseis e impeça a nossa casa comum de ficar devoluta é a mãe de todas as reformas estruturais. Neste capítulo, não há muitos países no mundo em situação tão vantajosa como Portugal; mais precisamente, a 16.ª posição no Índice de Desempenho das Alterações Climáticas.
Ora, a descarbonização da nossa economia começou há quinze anos, com o Plano Nacional de Barragens e o desenvolvimento pioneiro da energia eólica e tem hoje prolongamento nas novas centrais solares e parques eólicos, para além da aposta noutras tecnologias inovadoras como a energia das ondas ou o hidrogénio verde. Afinal, 60% da eletricidade gerada no nosso país já provém de fontes de energia renováveis e está ao nosso alcance o objetivo de, em 2030, chegarmos aos 80%. Mas podíamos aqui lembrar a proeza que foi vencer, no espaço de duas décadas, o nosso atraso histórico no ensino superior; ou a criação, no mesmo período, e praticamente do zero, de um sistema científico de nível europeu. O que têm em comum estas “reformas estruturais”? O serem frutos da governação do Partido Socialista.
Para além das reformas em matéria salarial, laboral, social e administrativa, que o PS já pôs em marcha nestes últimos meses, falamos, à la longue, de um reformismo verde, para usar a cor da época, que vai operar transformações multidimensionais na nossa existência material e modos de vida, inatingíveis com as velhas receitas. Ao mesmo tempo que se distancia de novos mitos, como o mito do decrescimento, ou de visões escatológicas, como as da colapsologia, o reformismo verde prepara a pólis do futuro, tornando a par e passo obsoletas ou curtas as reformas estruturais clássicas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico