A verdade a que a CP tem direito
É factual que informações incorrectas podem influenciar a opinião pública. Aliás, o propósito é, muitas vezes, esse mesmo, ou seja, manipular o nosso entendimento sobre os factos e, consequentemente, as nossas acções.
Entre os vários artigos de opinião sobre a Greve da CP, entre erros, omissões, imprecisões e ataques aos trabalhadores da CP, há um conceituado escritor e jornalista que chega a afirmar que, em Espanha, “a privatização dos comboios resultou em muito mais oferta, muito mais barata”.
Ora, para nos pronunciarmos sobre um negócio é imperativo que estejamos na posse dos vários dados e pormenores do mesmo. Conhecer apenas uma parte – no caso em questão, a dos militantes da privatização, daqueles cujos interesses tendem para a privatização de uma CP desvalorizada – resulta numa fileira de inverdades, beneficiando os interesses apenas de alguns. Convém não esquecer que quem divulga/informa tem o dever de ser objectivo, imparcial e verdadeiro, sob pena de estar a fomentar contra informação.
Dito isto, a Renfe – operadora pública ferroviária espanhola – continua a ser pública e recebe mais de 1000 milhões de euros por ano pelo contrato de obrigações de serviço público (COSP), ou seja, doze vezes mais do que a CP recebe do Estado português. Note-se que a Renfe usufrui desta compensação do Estado para a prestação de serviços regionais e suburbanos de passageiros. Já as unidades convencionais de passageiros de longa distância e de Alta Velocidade comercial são geridas em regime comercial, tendo esta última sido aberta à concorrência em 2021. No entanto, há 90 rotas ferroviários de média distância na rede convencional e 13 rotas de média distância na rede de Alta Velocidade (AVANT), disponibilizados pela Renfe, sujeitos a COSP.
Mas será o serviço público espanhol assim tão melhor do que o prestado pela CP?
Em Espanha há uma grande discussão sobre o desinvestimento na ferrovia convencional, levando a que, em algumas cidades do interior, o serviço, para além de ser lento, não tenha frequência. Dou-vos um exemplo interessante, à distância de qualquer pesquisa, cujo resultado é nulo: o percurso Tui – Vigo. Já na pesquisa Valença – Viana encontramos treze comboios. Resumindo: existe um grande número de cidades espanholas com ferrovia, mas onde não passam muitos comboios! De que adianta ter ferrovia sem serviço, sem frequência?
Em Espanha existe concorrência nas Linhas de Alta Velocidade, mas curiosamente, com empresas privadas cujos principais accionistas são empresas públicas ferroviárias de França e Itália. É óbvio que o serviço concorrencial promove a redução de preços e aumenta os níveis de serviço, incluindo a oferta. Mas há sempre um “mas”! A concorrência é apenas verificada nas linhas com alta rentabilidade, ou seja, nas ligações de Madrid ao sul de Espanha e, sobretudo, na ligação mais rentável de todas que é Madrid-Barcelona. Alguns exemplos: a empresa Ouigo (capitais da SNCF) opera em 4 cidades; a Iryo (capitais da Trenitalia) opera 12 cidades; por último, a empresa pública Renfe opera em 39. Ressalvo que, no caso da Renfe, contabilizei apenas as cidades de maiores dimensões. Há um conjunto de muitas outras cidades onde os comboios de Alta Velocidade e média distância da Renfe páram.
Se olharmos para a localização geográfica das cidades onde operam as empresas privadas, facilmente chegamos à conclusão que, se não fosse a empresa pública Renfe, o território a norte de Espanha ficaria esquecido e sem comboios. Continuamos com o tema da coesão territorial depois de sabermos quais as cidades onde chegam os comboios das empresas privadas?
Em suma, sabemos que temos problemas estruturais na nossa ferrovia, mas nem tudo é mau, como afirmado em vários artigos de opinião. Apesar de a CP operar com com uma frota bastante envelhecida (têm entre 20 a 90 anos), fruto do desinvestimento de décadas, possui bons níveis de serviço. Diariamente, a transportadora pública portuguesa opera 1300 serviços comerciais, desde Valença até Vila Real de Santo António, nos 2 527 quilómetros de vias férreas que sobreviveram aos encerramentos das últimas décadas.
No caso português seria fácil imaginar os resultados da liberalização – a operação privada seria apenas no eixo Porto – Lisboa e, quem sabe, Lisboa – Algarve. Todo o resto do país ficaria a ver os comboios passar, que é o mesmo que dizer sem comboios. Vejamos a privada Fertagus, que opera em condições extraordinárias: linha nova, comboios novos (que são do Estado), com a vantagem de operar numa área urbana de grande densidade habitacional. Portanto, o seu risco é zero.
Em primeiro lugar, salientar que a CP tem o privilégio de ter um dos seus melhores quadros a liderar a empresa, pelo que considero injustas as críticas tecidas ao Presidente da CP. Diria, inclusive, que o próprio país beneficia da competência de alguém que é um verdadeiro expert em matéria ferroviária, quer em conhecimento teórico, quer na sua aplicação prática à realidade.
Segundo, dizer que defendo, obviamente, o direito à greve. No entanto, é urgente que passemos a adoptar um modelo de luta que priorize a negociação constante, evitando prejudicar os passageiros. Olhemos, por exemplo, para o caso suíço, onde a grande maioria das empresas ferroviárias são públicas e os sindicatos dos trabalhadores em transportes não fazem greve. “Não imaginamos ser capazes de penalizar a população com as nossas ações”, é o lema dos líderes sindicais. Os sindicatos privilegiam a negociação, mesmo que por vezes seja um processo duro, evitando, desta forma, penalizar as populações e garantindo o seu apoio nas horas de forte investimento público na ferrovia. Na Suíça o povo ama a sua companhia de caminho de ferro, mesmo sabendo que recebe milhões de euros de recursos públicos. Já o caso italiano é mais restritivo, havendo legislação que limita as greves nas alturas festivas e em período de férias.
Voltando ao caso concreto de Portugal, sendo uma luta comum aos 17 sindicatos, é questionável por que motivo levam a cabo acções de luta em dias diferentes, sabendo, de antemão, que dias a fio de greve prejudicam seriamente os passageiros, levam à deterioração da imagem pública da CP e geram a ideia de que a privatização é uma solução.
Compreendo que os trabalhadores da CP vivam um momento difícil devido ao aumento da inflacção e do custo de vida. Mas estou convicto de que uma eventual privatização virá agravar a situação, diminuindo a operação nos eixos ferroviários mais deficitários, aumentando a precariedade laboral e piorando as condições de trabalho.
Incompreensível é a sugestão veiculada por vários comentadores de que não há greve nas concessões ferroviárias privadas. Tive o cuidado de pesquisar as greves do Sindicato dos Maquinistas entre 2021 e 2023. Num total de 170 dias de greves, os números são os seguintes: 152 dias nas concessões privadas; 18 dias na publica CP. Na análise sou até bastante generoso, porque se a pesquisa remontasse ao ano de 2013 os números seriam ainda mais elevados para os privados.
Os países europeus com maior investimento na ferrovia mantêm as suas companhias de caminho de ferro públicas! Sigamos os melhores exemplos.
O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico
Fonte: José Carlos Barbosa, Jornal Público, 11 de março de 2023