As casas, mudas testemunhas da vida
Os animosos liberais portugueses querem vender-nos materialismo por liberalismo. Ora, o materialismo é a doença infantil do liberalismo.
Se fosse vivo, Ruy Belo completaria este ano o seu nonagésimo aniversário. Ruy Belo sabia de casas a rodos. Escreveu versos sobre casas que valem as sentenças de mil colunistas artilhados de números e análises acerca do problema da habitação, título de um dos seus livros fundamentais. “Não sabem nada de casas os construtores / os senhorios os procuradores”, aprendemos no seu Homem de Palavra(s), de 1970. Quem também não sabe nada de casas são os liberais da nossa praça. Encarniçados contra o pacote “Mais Habitação”, do Governo, correram-no a brados de “marxismo”, “comunismo” e “pulsões bolivarianas”, à conta da medida de arrendamento compulsivo aí prevista, numa procissão de hipérboles como há muito não se via. Esta crise histérica da direita portuguesa revelou muito mais da sua psicologia grupal do que da magna questão da escassez de casas ou da bondade das medidas governativas.
Duas semanas volvidas, pensava-se que o coral de desbocados tivesse perdido o fôlego, quando João Miguel Tavares nos lança esta pérola, no Público: “A propriedade privada só é roubo para marxistas desmiolados – ela representa o reduto mais sagrado de cada indivíduo; o produto do seu esforço ou do esforço da sua família”. Pensava eu, ingenuamente, que o reduto mais sagrado de cada indivíduo fosse o seu pensamento, a sua consciência, a sua alma – para os que acreditam nela – ou até o livre-arbítrio, a ética, a família… Nunca me ocorrera que o reduto mais sagrado de cada indivíduo pudesse ser um apartamento vazio, um armazém destelhado ou um anexo de tijolos com uma placa de zinco a cobri-lo – e uma enxada lá dentro. Por falar em esforço, apostaríamos que João Miguel Tavares nunca surribou um talhão a golpes de enxada. É pena, porque talvez chegasse a compreender o trabalho braçal dos muitos que fizeram a propriedade privada de alguns e que nunca possuíram coisa alguma de sua – salvo a enxada e o esforço. É verdade que há os que suam as estopinhas para comprar imóveis e revendê-los pouco depois a preços especulativos. Ou o esforço dos fundos imobiliários que abocanham “redutos sagrados” no casco histórico das cidades – por preços que a vendedora do Bolhão diria que são “um roubo”. Podíamos resumir esta conceção paupérrima de propriedade privada com uma fórmula refinada: “o que é meu é meu”. Uma espécie de liberalismo pimba. Desmiolado. E que amesquinha o ideal da liberdade, que tem uma natureza moral, através da sua reductio ad proprietas.
Não nos equivoquemos. Tal credo tem uma raiz profundamente antipolítica. Como o demonstrou gente tão estimável quanto um Norberto Bobbio, um Michael Sandel ou uma Myriam Revault D’Allonnes, o liberalismo preconiza a liberdade de cada indivíduo se subtrair ao comum. Por contraponto à democracia, que o precede, o Estado liberal não tem como objetivo velar pelo comum, mas garantir juridicamente a separação do comum. O Estado é um mal necessário para salvaguardar o átomo humano no corpo orgânico da sociedade e, no mais, desamparar a loja. Evidentemente, a democracia contemporânea herdou e institucionalizou a teoria liberal do Estado − a separação de poderes e o primado da lei, que evita desmandos e garante os direitos fundamentais. Mas, nem a democracia se esgota nisso, nem a liberdade se esgota na liberdade económica. Desde logo, há a liberdade de participar na esfera pública, na comunidade política e no exercício do poder. Bem podem os liberais, por isso, falar de comunismo, de confisco da propriedade e outros despautérios. A liberdade tem uma dimensão social e auxiliar. Sem isso, é apenas uma liberdade de possuir. Uma liberdade imoral. Manter casas vazias perante a crise habitacional que estamos a viver é imoral. E tão imoral – senão mesmo mais – é o próprio Estado manter vazias as casas de que é proprietário.
Ruy Belo sabia de casas coisas que os liberais nunca aprenderão. Herberto Helder também sabia alguma coisa de casas. Sabia que “Casas são rosas/ para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança/ nos abandona para sempre”. Em Portugal, são muitos os que perderam a esperança de encontrar uma casa, um reduto habitável – e só é sagrada a casa habitada. O pacote do Governo não é uma panaceia. Não há panaceias, nem aqui, nem na Europa: a construção nova é uma falsa solução porque diferida no tempo e vulnerável aos humores mercantis. Mas se a iniciativa de António Costa desatinou a direita, trouxe esperança a muitos, pois enfrenta o problema em múltiplas frentes. Um problema que o sacrossanto mercado dos liberais não só não resolveu, como agravou.
Na verdade, os animosos liberais portugueses querem vender-nos materialismo por liberalismo. Ora, o materialismo é a doença infantil do liberalismo. E o liberalismo português está precisado de melhores aedos.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico