Burocracias inovadoras
Capacitar a Administração Pública para inovar além das abordagens tradicionais é crucial para que os governos consigam encontrar soluções para desafios que inevitavelmente surgirão no futuro, combinando a capacidade de realizar transformações no longo prazo com a resiliência e capacidade de resposta a desafios urgentes.
Podemos sempre dizer que os prémios valem o que valem. Mas valem muito quando destacam os resultados de um país, sobretudo em domínios que não são habitualmente valorizados. Nos meses de fevereiro e março deste ano, Portugal recebeu dois prémios que têm significado, mais do que simbólico, para a Administração Pública (AP) portuguesa. No World Government Summit 2023, organizado no Dubai por uma plataforma multilateral criada em 2013, este ano subordinado ao tema “Shaping Future Governments”, o LabX – Centro para a Inovação no Setor Público, da Agência para a Modernização Administrativa (AMA), venceu a categoria «Distinguished Initiative in Government Innovation», um reconhecimento do trabalho desenvolvido pelo LabX ao nível da inovação, simplificação e participação como dimensões que contribuem para o desenvolvimento de ferramentas, políticas e modelos que são essenciais para moldar o futuro da governação.
Também a AMA, com a plataforma Mais Transparência (transparencia.gov.pt), venceu o Prémio Especial WSIS Digital Service Design, da GovStack, uma iniciativa multissetorial, liderada pelo Ministério Federal de Cooperação e Desenvolvimento Económico, Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit (GIZ), Estónia, a União Internacional de Telecomunicações (ITU) e a Digital Impact Alliance e que se dedica a acelerar a transformação digital do governo em busca dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, prémio que destaca serviços públicos inovadores.
Naturalmente que quem tem a mão na massa nos serviços da Administração Pública (AP), lutando por melhores salários e condições de trabalho, pode pensar muitas vezes que estas coisas são música celestial face à crua realidade dos factos. Mas, independentemente de todas as críticas construtivas que possamos fazer, é fundamental, até por uma questão de honestidade intelectual, reconhecer que não são. São formas de reconhecer a inovação que nasce em estruturas organizacionais muitas vezes burocráticas na sua conotação negativa e que permite desenvolver um governo digital sustentável, com infraestruturas robustas e serviços digitais centrados no ser humano, que envolvam toda a sociedade, capacitem as pessoas, melhorem o bem-estar e construam sociedades mais inclusivas e resilientes. Atributos que a pandemia já demonstrou serem fundamentais para a AP e para a sociedade.
A inovação, longe de ser uma moda dos últimos anos, tem sido sempre a chave para alcançar mudanças, quer de curto prazo nos procedimentos e políticas, quer de longo prazo nos próprios sistemas de governação. O que é relativamente recente é a consciência da necessidade de uma abordagem sistémica nos mecanismos que estimulem todos os tipos de inovação, tal como refere o Observatório para a Inovação no Setor Público da OCDE: aquela que melhora práticas existentes para potenciar resultados, aquela que testa novas abordagens para garantir a adaptação a mudanças no ambiente, aquela que procura concretizar um objetivo específico e delimitado no tempo e aquela que explora temas emergentes que podem originar prioridades futuras ainda sem contornos definidos.
Promover esta cultura de inovação constitui um enorme desafio em particular nas culturas administrativas fortemente reguladas e exige reflexão tanto em torno das alavancas da inovação como em torno das tendências que se descortinam na inovação. No Relatório Embracing innovations in government: global trends 2023, apresentado no passado mês de fevereiro no World Government Summit, são precisamente destacadas algumas tendências em matéria de inovação que as recentes crises catalisaram, reforçando o papel crítico do Estado e demonstrando a sua capacidade de inovar quando as circunstâncias o exigem.
Tendências que incluem novas formas de accountability, com o digital a reforçar a transparência, para uma transformação digital inclusiva e centrada no ser humano e que reforce a confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. Também a transformação da prestação de cuidados de saúde com as novas tecnologias, com uma visão holística do tema, atento o envelhecimento da população ou as questões prevalentes de saúde mental. Ou ainda novas formas, físicas e digitais, de envolver cidadãos e residentes, abrindo os processos de governação de forma participativa.
Esta tem sido uma evolução do nível de maturidade das políticas de inovação para fazer a AP passar do modo inovação de emergência para o modo inovação com consistência, ou seja, uma capacidade permanente da estrutura administrativa e uma dinâmica constante dos atores da inovação. E não se pense que este tema é secundário, porque capacitar a AP para inovar para além das abordagens tradicionais é crucial para que os governos consigam encontrar soluções para desafios que inevitavelmente surgirão no futuro, combinando a capacidade de realizar transformações no longo prazo com a resiliência e capacidade de resposta a desafios urgentes.
Desenvolver esta abordagem de um ecossistema de inovação na AP tem sido também uma aposta de Portugal, proporcionando aos trabalhadores e lideranças da AP os meios que lhes permitam inovar continuamente e não limitar-se a mudanças episódicas que se consomem nas engrenagens da máquina administrativa. Uma aposta evidente com o lançamento do Simplex, em 2006, focado na eficiência da AP e em serviços mais simples a cidadãos e empresas. Passando pelo Sistema de Incentivos à Inovação na Gestão Pública em 2018, focado na capacitação dos trabalhadores, no desenvolvimento de projetos experimentais e no reconhecimento de projetos inovadores.
Até à Estratégia para a Inovação e Modernização da Administração Pública em 2020, focada no investimento nos trabalhadores, na inovação na gestão, no desenvolvimento da tecnologia e no reforço da proximidade às populações. Passos importantes para, no quadro da nossa tradição administrativa, desenvolvermos capacidade de inovação contínua, contrariando uma visão crua da nossa sociedade e da nossa AP que ainda persiste e que considera, utilizando palavras de José Gil (Portugal hoje: o medo de existir) que tendemos a ser um país de burocratas em que o juridismo impera de forma obsessiva, como se para compensar a não-ação.
Se por burocracia se entende, não uma ilusão de ação legitimada pela “violência anónima dos seus regulamentos”, mas a garantia de um sistema ao serviço dos cidadãos, não há problema em ser uma burocracia. Mas com regras claras, organização transparente, processos simples, capacidade de decidir de forma corajosa e de criar serviços e políticas inovadores, com efeitos reais e transformadores, para ir ao encontro das necessidades sociais, dar vitalidade à nossa existência coletiva e, consequentemente, promover o desenvolvimento do País.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico