“Chat Control”: entre a proteção das crianças e a salvaguarda das liberdades
A Europa tem a responsabilidade de ser firme contra o crime e exemplar na defesa dos direitos. Não podemos ceder à tentação de soluções fáceis que sacrificam liberdades duramente conquistadas.
O abuso sexual de crianças é uma das mais atrozes violações da dignidade humana. É um crime que destrói vidas, que deixa marcas irreparáveis e que a todos nos convoca à ação. Na era digital, a gravidade do problema ganhou contornos ainda mais inquietantes: plataformas online que deveriam aproximar pessoas e difundir conhecimento passaram a ser utilizadas também para fins criminosos, facilitando a circulação de conteúdos abusivos e tornando mais difícil o trabalho das autoridades.
Não é por acaso que os estudos mais recentes apontam que uma em cada cinco crianças na União Europeia é vítima de violência sexual durante a infância. Estes números são um apelo à urgência. Apesar da existência da Diretiva 2011/93/UE, que criminalizou estas condutas em todos os Estados-Membro, a verdade é que a resposta europeia continua a ser fragmentada. Cada país tem legislado à sua maneira e muitas empresas digitais limitam-se a agir de forma voluntária, sem regras comuns e com eficácia muito desigual. O resultado é um mosaico regulatório que fragiliza o combate a este crime e ameaça o próprio funcionamento do mercado único digital. Como tal, a regulação dos ecossistemas digitais a nível europeu é um imperativo, antes de mais, de natureza ética, sob pena de vivermos numa anarquia digital.
Foi neste contexto que a Comissão Europeia apresentou, em maio de 2022, uma proposta de regulamento conhecida como “Chat Control”. O objetivo parecia claro e justo: harmonizar regras, tornar obrigatória a deteção e denúncia de conteúdos de abuso, reforçar a prevenção e criar um Centro Europeu para coordenar esforços. À primeira vista, tratava-se de um passo firme para responder a um flagelo intolerável.
Contudo, à medida que a proposta foi sendo analisada, cresceram as vozes de alarme. Organizações de defesa da privacidade, especialistas em cibersegurança e setores da sociedade civil alertaram para os riscos de se abrir caminho a uma forma inédita de vigilância em massa. A possibilidade de monitorizar comunicações privadas levanta uma questão central: estaremos a proteger as crianças sem destruir, ao mesmo tempo, a arquitetura de direitos e liberdades que define o Estado de Direito?
Aqui reside o dilema. Nenhuma sociedade decente pode fechar os olhos perante o crime do abuso sexual de crianças. Mas não podemos aceitar soluções que, em nome de um bem maior, acabem por corroer os alicerces da liberdade individual. A história mostra-nos que a cedência permanente de direitos em nome da segurança resulta quase sempre em menos liberdade e, a prazo, em menos segurança.
Por isso, o PS defende que Portugal, no quadro das negociações europeias – ainda em curso – adote uma posição clara: qualquer medida de deteção ou denúncia deve ser sempre precedida de mandado judicial, respeitar critérios de proporcionalidade e aplicar-se de forma dirigida para casos de suspeita razoável e concreta de envolvimento em crimes de abuso sexual. Só assim poderemos assegurar um equilíbrio justo entre a proteção das vítimas mais vulneráveis e a preservação das garantias fundamentais de todos os cidadãos.
A Europa tem a responsabilidade de ser firme contra o crime e exemplar na defesa dos direitos. Não podemos ceder à tentação de soluções fáceis que sacrificam liberdades duramente conquistadas. A luta contra o abuso sexual de crianças exige meios eficazes, mas também coragem política para rejeitar atalhos perigosos. Porque proteger as crianças implica garantir que crescem numa sociedade livre, democrática e respeitadora da dignidade humana.