Cinco evadidos de Vale de Judeus e um governo em fuga
Se existiam gritantes insuficiências estruturais na prisão, não deveria a nova tutela ter já desencadeado uma intervenção?
À hora a que escrevo, mais de dois dias volvidos sobre a evasão de cinco reclusos de Vale de Judeus, não havendo ainda notícia de que tenham sido encontrados e detidos, parece estranho que o debate público (justificadíssimo, em função da gravidade do acontecimento) tenha começado por se centrar na atribuição de responsabilidades políticas ao Governo anterior e que do atual Governo ainda nada se tenha ouvido sobre o assunto. É uma estranheza que se adensa, aliás, em várias camadas.
A primeira é fácil de perceber. Enquanto os reclusos permanecerem evadidos, a urgência está na sua captura. A responsabilidade pelo enfrentamento desta situação de emergência é do atual Governo. E as medidas tomadas para assegurar o regresso dos cinco reclusos à execução da sua pena deverão ser avaliadas logo que seja possível conhecê-las. Neste momento, o que é prioritário é que os cinco reclusos sejam capturados. E pela eficácia dessa operação quem responde é o atual Governo.
Num segundo momento, deve naturalmente apurar-se as responsabilidades pela evasão. Representantes dos sindicatos vieram a terreiro veicular a ideia de que a culpa é toda do anterior Governo, pela falta de investimento no sistema prisional que determinou a insuficiência dos meios — aquele Governo cuja demissão foi decretada pelo Presidente da República em 7 de dezembro do ano passado. Todavia, durante os oito anos que durou a governação do Partido Socialista, não ocorreu nenhuma evasão de presos que suscitasse tanta preocupação em função da perigosidade dos evadidos. Uma fuga desta dimensão ocorreu apenas agora, na verdade, cerca de dez meses depois daquela demissão. Se existiam gritantes insuficiências estruturais, não deveria a área de tutela ter já desencadeado uma intervenção que prevenisse os riscos? Se havia dirigentes a substituir, não poderia este Governo, tão lesto a operar outras substituições, ter diligenciado nesse sentido?
O Estabelecimento Prisional de Vale de Judeus estava há vários meses sem diretor. Este é um facto que exige explicação imediata.
Tentou fazer-se crer que a raiz da evasão estava na substituição das torres de vigilância por sistemas de videovigilância, uma medida de modernização de estabelecimentos prisionais que vem ocorrendo pelo mundo fora, uma medida orientada para a eficiência e para uma gestão mais racional dos recursos humanos. A videovigilância deve ser complementada por cuidados especiais, por razões de segurança, estando-lhe normalmente associado um número limitado de horas de permanência no posto para garantir a atenção total dos vigilantes, assim como a proibição de porte de qualquer equipamento eletrónico pessoal por quem desempenha a função. Suspirar no séc. XXI pelas torres de vigilância próprias do modelo panóptico que nasceu no final do séc. XVIII é, no mínimo, uma bizarria. O certo é que quer a vigilância ocorra a partir de torres quer ela aconteça através de câmaras, é preciso que haja quem vigie e que quem vigie esteja atento.
Apontar já o cadafalso ao novo Governo é, porém, no que respeita à responsabilidade pela fuga, tão precipitado como responsabilizar o Governo anterior. Porque neste momento não podem ainda considerar-se excluídas as responsabilidades individuais, por negligência ou mesmo a título doloso. Também não são de excluir as insuficiências estruturais que desde sempre foram apontadas ao sistema prisional, inclusivamente no plano dos recursos humanos, porque a verdade é que a maioria das pessoas só se lembra das prisões quando há presos que fogem, sem que lhes importe aquilo que lá dentro se vive. Sobre as concretas circunstâncias da fuga subsistem as dúvidas e as incoerências — há, por isso, que desencadear rapidamente a investigação que permita ultrapassá-las.
A criminologia estuda há muito a tendência das sociedades atuais para afastar do centro das cidades (e do nosso olhar) os vestígios de sofrimento que são as prisões, os cemitérios ou os hospitais psiquiátricos. Mas, por vezes, eles impõem-se aos nossos olhos e forçam-nos a ver que temos de fazer mais. Que esta evasão, depois de os reclusos serem capturados, sirva pelo menos para isso. Para trazer o debate sobre o sistema prisional às prioridades da cidade.
Fonte: Cláudia Santos, Público, 9 de setembro de 2024