Compreender a complexidade criminal
A convite do diretor deste jornal, Filipe Alves, aceitei escrever uma crónica de opinião com caráter quinzenal neste histórico e prestigiado Diário de Notícias. Fi-lo com o sentido do dever cívico e do compromisso com o interesse geral. De acordo com os valores republicanos da liberdade, da igualdade e da fraternidade. De acordo com o compromisso com uma sociedade humanista, aberta, autónoma e responsável, diversa e compreensiva da vida e do mundo. Do compromisso com o Estado de Direito democrático.
Hoje, escolhi referir-me ao estudo realizado pela Europol (2024) sobre a criminalidade internacional e grave que opera na União Europeia, porquanto este estudo ilustra que a estratégia de Segurança Interna deve obedecer a uma abordagem cooperativa, entre forças e serviços, ágil, inteligente, preparada para compreender os diferentes graus de incerteza e complexidade e eficaz no pre-posicionamento e utilização atempada dos meios tecnológicos e humanos.
Pese embora termos a consciência de que as ameaças e riscos globais se têm vindo a disseminar e a intensificar, por força dos efeitos das sucessivas crises — desde a crise financeira global, à crise das migrações de 2015, pandémica da covid-19 e às guerras na Ucrânia e no Médio Oriente —, passando pelo terrorismo, os tráficos de droga e de armas, o “contrabando” de migrantes e o tráfico de seres humanos, a par com as fraudes documentais e informáticas e a cibercriminalidade, há que fazer um esforço para ir mais adiante na compreensão do modo como a criminalidade atua em termos internacionais. Só esse conhecimento permite capacitar as forças e serviços de segurança para enfrentar, com conhecimento, eficiência e eficácia, a complexidade das ameaças às sociedades democráticas.
Foi exatamente o que a Europol procurou fazer com um trabalho que permite compreender a complexidade dos níveis de organização internacional da criminalidade. Esse estudo concluiu que operam na União Europeia 821 redes de criminalidade grave, compostas por 25 mil elementos de 112 nacionalidades diferentes, sendo que 34 por cento dessas redes já opera pelos menos há 10 anos.
O mais interessante está na confirmação de que o maior esforço empreendido por essas organizações criminais está nas estratégias desenvolvidas para dissimular os recursos financeiros que resultam da atividade criminal. Esta está, em grande medida, associada ao tráfico de droga e de armas, à fraude documental e informática, furto e roubo, às redes de imigração ilegal e tráfico de seres humanos, entre outros.
O maior esforço efetuado por estas redes está na “lavagem” do dinheiro. O estudo conclui que, em regra, estas organizações procuram instrumentalizar setores da vida económica e social quotidiana para dar uma face de legalidade aos proventos do crime e onde estão o setor do imobiliário, da construção civil, da restauração, da hotelaria, dos bens de elevado valor económico-financeiro, da logística e das operações que movimentam grandes transações financeiras.
Mais se afirma que se trata de redes com lideranças fortes, ágeis, sem fronteiras, com elevados níveis de organização e sofisticação tecnológica e muito violentas. É comum a essas redes alojarem-se em territórios/espaços sociais com vulnerabilidades, recrutando adolescentes, jovens e populações mais vulneráveis que, com o tempo, acabam por ser vítimas da chantagem e da violência e do império do medo. 71% destas redes recorrem à corrupção para a obtenção de informações, influência e poder sobre os sistemas de investigação e de aplicação da lei.
Verifica-se que é essencialmente no centro da Europa que essas redes se instalam e operam. Portugal, como país de trânsito intercontinental, não poderia deixar de estar exposto a alguns desses riscos. Pelas conclusões do estudo, estamos sobretudo expostos ao tráficos de drogas, à fraude documental e informática e às redes de imigração ilegal.
Ora, o estudo permite confirmar que Portugal, embora exposto às ameaças e aos riscos globais, continua a estar entre os países mais pacíficos do mundo. Aliás, de acordo com o Relatório Anual de Segurança Interna, em 2003 houve mais cerca de 45 mil crimes participados que em 2023. Em 2013 houve mais cerca de 5 mil crimes participados que em 2023. Embora a violência esteja “mais violenta”.
É a razão por que se deve continuar a investir na investigação, no conhecimento, na formação e capacitação de todos os atores do Sistema de Segurança Interna e no reforço da articulação e da cooperação entre todos os atores que integram o Sistema de Segurança Interna e na sua articulação e cooperação. Sem esquecer a Estratégia Integrada de Segurança Urbana e uma cidadania informada, esclarecida e exigente com os valores democráticos e o Estado de Direito.
Fonte: José Luís Carneiro, Diário de Notícias, 20 de novembro de 2024