Convicção e moderação: a sintaxe de Soares
A sua coragem, a sua alegria, o seu bom-viver, contadas por mil e um testemunhos, são qualidades épicas que completam a imagem de um homem genuíno que se tornou herói da nossa epopeia coletiva de ditadura, revolução e democracia.
Por mais artigos que se escrevam, não há palavras suficientes para homenagear Mário Soares. Ele, que queria ser escritor e foi durante anos cronista, seguramente apreciaria a quantidade de palavras que se publicam a seu respeito. Desde histórias a críticas, com um sem fim de elogios pelo meio, a sua centralidade no Portugal democrático é inegável para todas as cores políticas.
Ao contrário de tantos, não tive a honra de o conhecer. Devo ter tido o privilégio de o ver meia dúzia de vezes, nunca tendo trocado palavras. Eu tinha apenas 22 anos quando faleceu e, por muito que leia, Soares é uma personagem que ultrapassa qualquer descrição. A sua coragem, a sua alegria, o seu bom-viver, contadas por mil e um testemunhos, são qualidades épicas que completam a imagem de um homem genuíno que se tornou herói da nossa epopeia coletiva de ditadura, revolução e democracia.
Não quero, por isso, participar na polémica sobre qual, afinal, era o verdadeiro pensamento político de Mário Soares. Esta discussão estéril não é nova – há anos que se repete, sobre o tema da Geringonça ou do 25 de novembro. Ela regressou em força numa sessão solene onde a memória do Homem foi, por muitos, cortada às fatias e instrumentalizada para o fim que cada um queria prosseguir.
No final do dia, ficou a dicotomia entre coerência e contradição. Enquanto Pedro Nuno Santos disse que “o Mundo mudou, nestas décadas, muito mais do que Mário Soares – e que as inflexões no seu posicionamento resultam mais dos efeitos do pêndulo da História do que de incoerências no seu pensamento”, Aguiar Branco seguiu-se-lhe afirmando que “muito mais que o fiel da balança, Mário Soares foi um pêndulo – deslocava-se de um lado para o outro, em função daquilo que acreditava ser o melhor para o país, em cada momento”.
A ontologia pendular de Soares interessa pouco aos portugueses. Se é evidente que Soares evoluiu o seu pensamento com o tempo – mal seria, também é verdade que este não acordou para os males do neoliberalismo ou até para a necessidade de convergência à esquerda apenas na Aula Magna, que alguns pejorativamente descrevem como “o final da sua vida”. Em dezembro de 1993, Soares escreve no DN uma carta pública a Cunhal pelo seu 80.º aniversário. Nela diz que “desaparecida a União Soviética, destruído o projeto comunista à escala planetária e desfeito o espantalho do «perigo vermelho» – que então era real – os comunistas hoje formam um partido como qualquer outro, sem haver razão para exclusões, desconfianças particulares ou discriminações”. Meses depois, realiza-se o Congresso Portugal Que Futuro?. Manuel Alegre é claro nas suas memórias – Mário Soares tem a “iniciativa”, preocupado com uns Estados Gerais que abriam o PS ao centro “mas [que] não dava nenhum sinal de diálogo com as forças à esquerda do PS.”
Estas não são contradições, mas outrossim, conjugações de convicção com moderação. No mesmo Governo em que afirmou ser necessário “pôr o socialismo na gaveta” para salvar a democracia, criou o Serviço Nacional de Saúde. Foi um precursor das causas ambientais e climáticas, como Inês Sousa Real eloquentemente recordou. Foi o autor das Presidências Abertas que, nomeadamente em Lisboa, mostraram o drama das barracas. Soares sabia tanto o que queria como o que podia. Com as armas que tinha ao seu dispor, ia sempre à luta pelo que mandava a sua consciência.
Essa é a arte suprema da política – não só a de fazer o possível, mas de construir possibilidades. Esse exemplo é hoje mais necessário do que nunca. A época da Terceira Via, tão criticada por Soares, em que moderação implicava cedência nos princípios, redundou num ressentimento generalizado, dentro e fora dos partidos da social-democracia. Um pouco por todo o Ocidente, há cidadãos frustrados com a falta de ascensão social e desiludidos com uma esquerda meramente defensiva, sem sonho nem ambição. Há quem ande agarrado ao esquerdómetro, seja para puxar mais para a esquerda seja para puxar mais para o centrão. Os tecnocratas caducos perderam expressão num embate entre os puritanos da ideologia, madres superiores da virtude política, e um novo “McCarthyismo” que atira contra qualquer nova ideia, classificando-a de “woke”.
Soares oferece-nos outra pedagogia – a moderação como amor ao pluralismo e horror aos excessos da polarização, como genuinidade no modo de estar e dizer e a perspicácia de saber onde se está e como escolher e dirigir o combate que importa. Num país onde o contrato social se deslaça, e numa época onde populistas afrontam as instituições democráticas com total impassividade da direita democrática, falta-nos o seu olhar no horizonte e a assertividade da sua ação. Urge aprender com Soares a sintaxe da moderação e da convicção.