Doutoramentos nos politécnicos: um caminho que se abre
Há um caminho importante que vem sendo feito no âmbito da melhor articulação da investigação doutoral com as empresas. Mas este não é um caminho de um só modelo.
Passaram 33 anos desde que José Mariano Gago publicou o Manifesto para a Ciência em Portugal. Na contundente análise crítica que tecia sobre a situação da ciência como prática social e domínio de saber, apontava o isolamento, a ausência de debate e cooperação, a nível científico e social, como as condicionantes maiores do subdesenvolvimento então vigente. Ao longo da sua ação à frente da Ciência, da Tecnologia e do Ensino Superior (1992-2002; 2005-2011), Mariano Gago trouxe a Ciência e o Ensino Superior para esfera pública e demonstrou que ambos são matéria política – pilares nucleares de cidadania, de desenvolvimento social e económico.
Malgrado todo o investimento e capacitação adquirida, especificamente na liderança de Manuel Heitor (2015-2022). Portugal continua com défice nas qualificações dos recursos humanos, baixa intensidade de I&D e dificuldade em vencer o hiato entre a investigação realizada e a sua transferência, com consequências na produtividade, no crescimento económico, na cidadania democrática.
Estas realidades manifestam condicionalismos estruturantes do nosso passado que necessitam de tempo e persistência na ação política. Mas também são reptos do tempo presente: as democracias e economias do conhecimento são construções exigentes, que impõem o permanente aprofundamento de qualificações e competências, visões diferentes, flexibilidade no acolhimento de problemas, criatividade e aplicabilidades nas propostas de soluções.
Há muito que a procura das melhores estratégias e de novas configurações que as sirvam é tema em diversos países e instituições de ensino superior, onde emergiram propostas como a realização de doutoramentos profissionalizantes em ambiente não académico.
É neste contexto que se enquadra a iniciativa legislativa que o Parlamento aprovou no dia 24 de fevereiro, conferindo a possibilidade de concessão do grau de “doutor” pelos Politécnicos, bem como a existência de Universidades Politécnicas no quadro do sistema de ensino português. Estas duas medidas, consagradas desde já na Lei de Bases do Sistema Educativo, serão alvo de regulamentação futura pelo Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior (RJIES). Paralelamente, o diploma estabelece também que os institutos politécnicos podem utilizar a designação Polytechnic University para fins de internacionalização.
As duas primeiras medidas aprovadas configuram uma importante abertura do sistema de ensino superior, incrementando a sua diversidade pelo reforço da capacidade de respostas diferenciadas ao nível da formação e da I&D.
O número de doutorados residentes em Portugal tem aumentado ao longo dos anos, atingindo o valor de 37.113, em 2020. Segundo dados da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), 77% dos doutorados residentes no país trabalham no ensino superior, 8% trabalham em empresas, 6% criaram empresa. Constata-se, assim, que a maioria das formações doutorais permanece orientada para academia (professores-investigadores).
Reconhecemos que, paralelamente, há um caminho importante que vem sendo feito no âmbito da melhor articulação da investigação doutoral com as empresas. Mas este não é um caminho de um só modelo.
Com efeito, “não há qualquer razão para que a atividade de investigação seja de um único tipo exclusivo, dada a diversidade das nossas sociedades. Esta discussão tem sido importante nas sociedades mais maduras e industrializadas durante os últimos 20 ou 30 anos. Mas é claro que não é uma diversidade hierárquica, não é uma questão de um modelo ser melhor ou pior, mas sim tipos essencialmente diferentes de ensino e investigação” (Manuel Heitor, 2017).
Os Doutoramentos Profissionais, outorgados pelas instituições superiores de cariz vocacional estão a expandir-se na velha Europa, e há razões que o justificam. “O que ouvimos dos nossos parceiros na indústria e na sociedade, é que estão à procura de profissionais de pesquisa que sejam capazes de investigar, analisar, projetar experimentar e provocar mudanças no seu campo profissional” (Maurice Limmem, Presidente da Associação Holandesa de Universidades de Ciências Aplicadas, 2023). Diversas instituições ensaiam, testam e pesquisam novas formas de estruturação destes doutoramentos, repensando as relações de colaboração com a sociedade civil ou o tecido empresarial, a definição e gestão de competências dos doutorandos, a transição para o emprego, os modelos organizativos. E esse é o caminho, pois, “não queremos cair na armadilha de simplesmente copiar a tradição académica” (Van der Zwan, 2023).
Este é também o desafio que o Ensino Politécnico em Portugal tem pela frente: 1) abrir os doutoramentos à vida profissional económica, social e cultural, assegurando um base investigativa sólida, um ambiente de experimentação e crítica; 2) diversificar as atividades de I&D, reforçando a ligação às instituições, às empresas, aos territórios, com alicerces numa cultura colaborativa orientada para o desenvolvimento de projetos conjuntos; 3) simultaneamente, as formações doutorais de cariz profissionalizante deverão ser um estímulo ao aprofundamento, em continuidade, de um modelo formativo onde a atividade investigativa, em diferentes níveis, deve ser o eixo matricial do currículo de todas as formações, acentuando a postura profissionalizante, performativa, do ensino superior politécnico.
No âmago da ambição dos doutoramentos profissionalizantes está não só a qualificação de profissionais, mas também, pela sua real inserção no mercado de trabalho, a qualificação do emprego, do tecido produtivo através da incorporação de conhecimento e tecnologia ao longo de toda a cadeia produtiva, induzindo métodos de produção sustentados, modelos de organização e negócio adequados ao mundo digital.
São múltiplos desafios, mas também o são as oportunidades. A crise demográfica coloca no horizonte a retração do número de estudantes jovens no ensino superior, com efeitos na sustentabilidade das instituições, mas, acima de tudo, com consequências para o desenvolvimento e competitividade do país, da sua capacitação e coesão territorial, num contexto global. Os doutoramentos profissionalizantes serão, também, um contributo relevante à abertura da base social do ensino superior, acolhendo profissionais no ativo, à semelhança do que hoje ocorre, particularmente, nos Países Baixos e nalguns estados federais da Alemanha.
Portugal precisa de instituições de ensino superior sólidas, com projetos próprios diferenciados na formação avançada de recursos humanos, e as instituições precisam de melhorar a sua atratividade junto de públicos que não exclusivamente jovens, integrando a educação de adultos nas suas estratégias formativas. O país não pode desperdiçar capital humano.
As Redes Europeias de Ciência e Ensino Superior, as Agendas Mobilizadores e os Laboratórios Colaborativos, constituem um impulso crucial à partilha de conhecimento, experiências, fomentando a circulação de pessoas, projetos, conectado sinergias nacionais e europeias em redes de CT&I, onde os doutoramentos de interface (há muito implantados em diversos sistemas educativos europeus) encontram um campo privilegiado de realização.
É sempre sobre redes abertas de ciência e tecnologia à sociedade e ao mundo, contra o isolamento e o cooperativismo estreito, como nos dizia Mariano Gago, que o conhecimento se constrói e circula em redes neuronais transformadoras. “Os indicadores de ciência são aqueles que melhor explicam a desigualdade entre países e regiões” (Sampaio da Nóvoa, 2023).
A interação entre as instituições de ensino superior e a indústria, a arte, a economia, o ambiente, a política, são, entre outras esferas, o espaço pleno da concretização da sua responsabilidade social, a espiral permanente da sua renovação e compromisso. É nessa espiral virtuosa que as economias e as democracias do conhecimento se consolidam e a cidadania individual ou coletiva se afirma.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Rosário Gambôa, Jornal de Letras, Artes e Ideias, 17 de abril de 2023