Em nome da dignidade
1. Início dos anos 90, às portas de Lisboa, o Asilo 28 de Maio, Porto Brandão, servia de abrigo (não se podia chamar habitação) a dezenas de famílias. Uma maravilhosa vista sobre o Tejo fazia aquelas pessoas sonharem com uma vida de qualidade. Famílias que se formaram e cresceram sem luz e água canalizada. Gerações que mantinham o ciclo de pobreza e que viviam excluídos da sociedade. A escola era inacessível e o nível de analfabetismo assustador para uma sociedade que já vivia em democracia há quase 20 anos. Ali, o mundo parecia um mundo à parte da azáfama das margens norte e sul do Tejo. Lisboa crescia e começava os primeiros passos na erradicação de barracas. Almada acolhia todos quantos ali chegavam, de dentro e fora das fronteiras de Portugal, a Lisnave ainda laborava e garantia o sustento de muitas famílias. A democracia celebrava os primeiros 20 anos e tantos ainda excluídos de oportunidades.
2. Recordo o início da minha atividade partidária, com um punhado de jovens socialistas de Almada e o sonho de transformar a sociedade numa sociedade inclusiva, geradora de igualdade de oportunidades, onde, sem dúvida, a escola era o elevador social que melhor garantiria um futuro para tantos jovens da minha geração. Para nós, em 1991, nascidos da revolução, movia-nos uma vontade férrea de fazer, construir, ajudar, “pôr mãos à obra” para transformar sonhos em realidade. Foi com esta vontade imensa de mudar a vida das pessoas que encontrámos o Asilo 28 de Maio. A dona Teresa era a presidente da Comissão de Moradores, enérgica, determinada, corria para a Assembleia Municipal onde as suas palavras nunca demoveram os responsáveis autárquicos da época, nunca lhe deram uma resposta, nunca visitaram o Asilo 28 de Maio para perceberem as condições miseráveis em que viviam tantas famílias. Estes jovens fizeram uma parceria com a Comissão de Trabalhadores e às crianças que não iam à escola ensinávamos o alfabeto, a juntar letras e a construir palavras. Os pais e avós juntavam-se sábados e domingos para aprenderem o que lhes podíamos ensinar: letras, números, palavras…
Foi connosco que, pela primeira vez, meninos do Asilo 28 de Maio tiveram um livro ou um brinquedo.
3. Chegou a campanha de 1995. António Guterres visitou o Asilo 28 de Maio, impressionado com a pobreza extrema destas pessoas prometeu que se fosse eleito primeiro-ministro a primeira medida seria realojá-las. Movido pela enorme consciência social, percebeu a urgência de conferir futuro e dignidade àquelas pessoas. Para que crianças pudessem ser crianças. Para que adultos pudessem ter uma vida decente. Para que os mais velhos pudessem ter condições de vida com mínimos de dignidade.
Guterres ganhou as eleições em outubro de 1995. Tomou posse em novembro. Em dezembro, assinou o protocolo de realojamento com a Câmara Municipal de Almada. Foi a primeira vez que a presidente da Câmara Municipal de Almada se deslocou ao Asilo 28 de Maio.
A 6 de janeiro de 1996, uma semana depois, após uma tempestade horrível, o Asilo 28 de Maio abateu e morreu uma criança de seis anos.
O Governo, à época, não poupou esforços e realojou todas estas pessoas. Muitos meninos foram à escola e hoje são parte da comunidade. Porque a ambição do Governo socialista em combater a pobreza os levou a uma vida com direitos e mais oportunidades.
4. Recordo tudo isto para sublinhar a enorme importância do Rendimento Mínimo Garantido (RMG) como instrumento de combate à pobreza severa. Como a criação do RMG, hoje Rendimento Social de Inserção (RSI), correspondeu a uma visão, ambição e coragem de António Guterres para lutar contra a pobreza extrema em Portugal.
Recorde-se que já em 1994, pela mão de Lino de Carvalho (PCP) e João Proença (PS), dois diplomas sobre rendimento mínimo foram apresentados no Parlamento e chumbados pela direita liderada por Cavaco Silva. À época, António Guterres assumiu como compromisso com os portugueses criar uma prestação social que garantisse mínimos de dignidade às pessoas.
Formado o Governo, não faltou coragem a António Guterres, Ferro Rodrigues e Paulo Pedroso para construírem, desenharem e implementarem aquele que seria o instrumento mais decisivo que faltava de combate à pobreza e promoção da inserção social.
Contra a diabolização da direita a esta medida, autarquias, IPSS, técnicos da Segurança Social mobilizaram-se para retirarem da pobreza muitas pessoas ao longo desses 25 anos.
Sem a visão de Guterres sobre a coesão social não havia RMG nem a coragem para romper as barreiras da pobreza.
É, por isso, justo dizer que este instrumento foi decisivo para retirar muitas pessoas da pobreza;
É, por isso, justo sublinhar a importância deste instrumento ao serviço no combate ao abandono escolar, (41,4% em 1995 e 8% hoje);
É, por isso, justo relembrar o impacto nas comunidades ciganas, permitindo que muitas crianças fossem à escola;
É, por isso, justo saudar todos os milhares de profissionais, IPSS, autarcas que trabalharam para que esta medida conferisse dignidade a tantos e tantos portugueses;
É, por isso, justo frisar os inúmeros projetos de criação de emprego e projetos de vida que muitos beneficiários do RMG ergueram para as suas vidas e das suas famílias;
É, por isso, justo referir que este instrumento incrementou o combate à exclusão com projetos notáveis de inserção social.
5. Se há falhas? Certamente que haverá, desde logo porque é mais fácil apoiar monetariamente as pessoas do que conseguir a sua inserção social. E o país, entre outros exemplos, desvalorizou durante tempo excessivo a importância da habitação.
Há, ainda hoje, milhares de pessoas que não têm habitações em condições dignas. Na anterior legislatura, com a Lei de Bases da Habitação, por impulso do PS, demos mais um passo para cumprir o direito fundamental à habitação.
Nesta legislatura, a medida do 1º direito para a construção de habitação em condições, numa mobilização entre o Governo e as autarquias, é um passo decisivo em que não podemos falhar como comunidade, garantindo habitação condigna a milhares de portugueses.
Após 25 anos de experiência é tão importante recolher os contributos positivos como aprender com os erros e as falhas para garantir que no futuro a medida seja ainda melhor e mais eficaz.
Faz, por isso, sentido avaliar uma política pública desta importância e dimensão. Não nos podemos conformar com os níveis da pobreza que ainda temos, em particular da pobreza infantil e juvenil, agravados neste contexto pandémico. As famílias jovens precisam de um RSI melhorado e devemos questionar-nos se o valor do RSI garante mínimos de dignidade.
Mas uma reforma desta envergadura deve ser precedida de uma avaliação baseada na evidência e que valorize o que as pessoas fizeram, o que aprenderam, o que têm para ensinar, o que falhou, quais os resultados positivos.
6. Nestes dias, o debate concentra-se em saber se deve ou não ser reformada esta medida. As mesmas vozes à direita, por preconceito, diabolizam uma medida que teve impacto muito positivo na vida de milhares de portugueses, que ajudou muitas crianças e jovens a sair da pobreza.
Tal como há 25 anos, por iniciativa do Governo, o Parlamento, os parceiros sociais e as IPSS terão de estar envolvidos num amplo e aprofundado debate para melhorar o que houver a melhorar, retirando mais pessoas da pobreza.
Espero uma reforma pelo menos com tanta ambição e coragem como a que Guterres teve na criação RMG, hoje RSI, em nome de uma comunidade que só pode avançar com mais solidariedade e mais igualdade de oportunidades. Em nome de uma sociedade decente como tantos têm sonhado e trabalhado — para que o Asilo 28 de Maio não mais exista no Portugal moderno.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Ana Catarina Mendes, Jornal Expresso, 02 de julho de 2021