Em Portugal há uma espécie de prisão perpétua – a revisão da Lei da Saúde Mental
Talvez o título desta prosa chame a atenção para o processo em curso de revisão da Lei da Saúde Mental (LSM), um processo que dignifica o Estado de direito e olha com olhos de ver para os cidadãos mais silenciados entre nós. Vamos ter uma nova LSM ao fim de quase 25 anos de vigência da anterior.
Em Portugal há uma espécie de prisão perpétua, porque os chamados internamentos compulsivos podem resultar numa vida inteira sem liberdade. É a própria Constituição que o consente, através da prorrogação sucessiva de uma medida de internamento (artigo 30º/2). Como o Comité Europeu para a Prevenção da Tortura e Tratamentos Desumanos constatou, há gente esquecida em regime privativo de liberdade por anos e anos, gente idosa, por exemplo, sem capacidade de locomoção, posta “ali”, sem alternativa, num “para sempre” prorrogado por falha nossa.
É por causa desta “falha nossa” que o Governo apresentou a proposta em discussão na AR. Uma proposta que devemos à reflexão do grupo de trabalho liderado pelo professor Miguel Xavier.
Está em causa proteger os direitos do doente, desde logo de reclamação e revisão de decisões como a de tratamento involuntário, nomeadamente através da figura da “pessoa de confiança”
Está em causa substituir a agressão do tratamento compulsivo por um tratamento involuntário último recurso. O tratamento deve ser feito no meio menos restritivo possível, em ambulatório. Temos de ter respostas e investimento no acompanhamento próximo dos doentes, e é isso que evita a necessidade de internamento.
Está em causa proteger os direitos do doente, desde logo de reclamação e revisão de decisões como a de tratamento involuntário, nomeadamente através da figura da “pessoa de confiança”. Está em causa consagrar diretivas antecipadas de vontade e medidas efetivas de proteção da gestão do património do doente. Tratamentos como a eletroconvulsivoterapia e estimulação magnética transcraniana têm de ter envolvimento da vontade do doente.
Está em causa perceber que o que determina a possibilidade de tratamento involuntário não é a doença mental em si, mas a existência de perigo para bens jurídicos ou patrimoniais do próprio ou de terceiros, devido à doença mental e recusa do tratamento. Temos mesmo de restringir ao máximo os tratamentos involuntários e acabar, de uma vez por todas, com a evidência constatada de que há gente fechada em estruturas de saúde sem razão para tal.
Temos de concretizar decentemente isto de sermos uma sociedade composta por cidadãos que queremos livres e iguais.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Isabel Moreira, Jornal Expresso, 27 de janeiro de 2023