Equidade, um princípio que nos une
Desde há alguns anos que a visão das organizações centradas nas pessoas se tornou central na gestão de recursos humanos, focada na dimensão aberta e participativa, mobilizadora e corresponsável da gestão.
Nas suas vestes de empregador, compete ao Estado dar testemunho prático desta visão quando gere o universo dos trabalhadores da Administração Pública (AP). Uma realidade que, fruto da sua evolução histórica, reúne uma constelação de entidades de distinta natureza jurídica, com mais de 733 mil postos de trabalho (dados de setembro de 2022), diferentes modelos de contratação dos seus trabalhadores e largas dezenas de carreiras profissionais, muitas das quais ainda por rever na sequência da reforma iniciada em 2008. Assim, na prática, continuamos a encontrar trabalhadores na AP com diversos mecanismos de progressão remuneratória, uns mais assentes no decurso do tempo, outros mais assentes na avaliação de desempenho. Mas a diversidade de carreiras e mecanismos remuneratórios não é, em si mesma um problema. Só passa a ser problema se originar situações de tratamento distinto para situações que deveriam ser tratadas de forma análoga.
Por isso é tão importante garantir que, quando se discutem carreiras, não se discutem isoladamente mas no contexto de um ecossistema global de emprego público. Um ecossistema que é mais do que a mera soma das suas partes, pois existem conexões e similitudes entre profissões que trazem consigo a obrigação ética de tratar de forma equitativa os diversos profissionais, independentemente do número de trabalhadores que representem. A equidade não é função da quantidade de pessoas que abranja mas dos parâmetros de comparabilidade que se entendam adequados em razão do tipo de contributo que trazem para a empresa ou para o serviço público. Entre estes estão o grau de conhecimento técnico-científico, as responsabilidades de coordenação de equipas, a capacitação contínua e especializada, o leque salarial ou o ritmo de progressão remuneratória, só para referir alguns.
O princípio da equidade procura, assim, garantir coerência no tratamento dos diversos profissionais, não só por razões intrínsecas de justiça mas também porque desde há muito tempo que as empresas perceberam que, para alcançar os resultados pretendidos, necessitam do envolvimento ativo dos seus trabalhadores. E que estes, para estarem motivados, necessitam de valorização, reconhecimento e da perceção de equidade entre todos.
No caso da Administração Pública, a responsabilidade de gerir esta perceção de equidade é, em primeira linha, do governo, órgão superior da AP, pela forma como define as carreiras, como gere os trabalhadores e como comunica as suas opções de gestão. É o governo que deve manter o foco no objetivo central de coerência e equidade, no meio da discussão, evidentemente legítima, sobre a carreira A ou B. Porque só garantindo uma visão congruente na sua globalidade é possível desenvolver uma AP que, continuando a ser um elemento central do Estado de bem-estar, seja, parafraseando a OCDE, orientada para o futuro, flexível, e que atraia e realize profissionalmente diversos tipos de trabalhadores. Uma AP que se mova para além de uma gestão meramente burocrática, que é hoje desafiada por modelos assentes numa maior intensidade de saber, com uma evolução perspetivada na base de um sistema de mérito, com ampliação das tarefas desempenhadas e sistemas de aprendizagem contínua que potenciam a progressão horizontal e em espiral na carreira e uma crescente participação dos trabalhadores nas decisões.
E só existe uma forma de lidar com este desafio: clareza, transparência, diálogo e capacidade de construir uma perceção realista que articule as expetativas dos trabalhadores com as necessidades operacionais das organizações públicas. Como nos diz Yuval Noah Harari (21 lições para o século XXI), a lucidez tem de sair da reflexão e do debate e ser materializada em decisões. Por isso, o governo deve desenvolver uma imagem de um futuro desejado, lúcido e realista para cada profissão, contextualizado num ambiente mais amplo com outras profissões, e mobilizar os profissionais na sua construção. Uma construção que necessariamente combine a sustentabilidade como princípio de responsabilidade perante o futuro, com a equidade.
Curiosamente, parecem existir muitas semelhanças na gestão de recursos humanos e na política. Utilizando as palavas de Daniel Innerarity (A transformação da política; O futuro e os seus inimigos; O novo espaço público), o decisor político, tal como o gestor de recursos humanos, deve fazer um esforço contínuo para tornar os conflitos positivos, tornar transparente a relação entre a contribuição dos indivíduos e a sua utilização coletiva, e mobilizar as pessoas para que, cientes das suas responsabilidades, assumam um papel ativo, cooperando na construção do futuro desejado. Neste sentido, a política, como a gestão de recursos humanos, não se reduz à gestão do existente e do imediato, constrói verdadeiramente o dia de amanhã. Com lucidez, assertividade e capacidade de diálogo. Porque a equidade é um princípio mas também é um objetivo que deve unir todas as pessoas na assunção e no exercício das suas responsabilidades.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Fátima Fonseca, Jornal Expresso, 31 de janeiro de 2023