Ética e Desassossego
Não podemos nem devemos negar que têm acontecido diversos episódios com um potencial perigoso de minar a confiança das pessoas nas instituições democráticas. Mas no estado de hiperexcitação coletiva que vai sendo perigosamente normalizado, estamos a criar riscos novos.
Sim, também vou escrever sobre a importância da ética na esfera pública. O tempo que vivemos justifica que reflitamos acerca deste tema sob várias perspetivas. A integridade pública é considerada um dos pilares das estruturas políticas, económicas e sociais, pelo que, como refere a OCDE, devemos promover uma cultura de integridade em toda a sociedade como fator de combate à corrupção e de salvaguarda da qualidade e do futuro da democracia.
Os ideais coletivos, os valores que definem a nossa sociedade, tanto conformam as normas jurídicas que são a face mais visível da respetiva infraestrutura reguladora, como sustentam a capacidade de autorregulação dos indivíduos. A ética reside nestes princípios obtidos através da razão e que apontam um caminho para o comportamento humano que permita o progresso, prosperidade e felicidade na sociedade. São diretrizes pelas quais a pessoa se rege, de acordo com a sua consciência e que têm por base os valores que influenciam as atitudes, os comportamentos, as escolhas e as decisões.
Por maioria de razão, quando falamos nas pessoas que exercem poderes públicos, funcionários públicos ou governantes, a ética torna-se crucial, na medida em que se espera que o serviço público disponha dos melhores, daqueles que possuem estes valores fundamentais e deles deem testemunho ao resto da sociedade. Na Administração Pública, a ética é condição nuclear da boa governação porque aumenta a confiança dos cidadãos nas instituições e nos seus agentes, não só evitando a corrupção mas prosseguindo ativamente o interesse público na concretização das missões de serviço público nas funções que desempenham. O que, aliás, apresenta hoje novos desafios, numa cultura organizacional que se pretende pós-burocrática e que muitas vezes parece desafiar os valores tradicionais do setor público quando se orienta para a colaboração, as parcerias com stakeholders externos e a inovação.
A adoção de códigos de conduta e de mecanismos de prevenção e controlo da corrupção são apenas algumas das manifestações de políticas abrangentes de promoção da integridade na esfera pública, também presentes no nosso país. Mas o maior desafio parece ser ir além da regulação e proporcionar mecanismos que apoiem a reflexão individual em torno do significado dos valores em se que traduz o interesse público. Mecanismos que ativem uma verdadeira bússola individual que oriente cada indivíduo face às circunstâncias concretas do quotidiano. Por exemplo, quando participa em processos de contratação pública. Quando utiliza informação a que tenha acesso. Quando recebe ofertas. Quando é convidado para integrar uma equipa governativa. Ou quando deixa de exercer funções públicas. Em suma, temos de dispor de mecanismos que nos permitam identificar e saber colocar em prática os valores que todos defendemos para a nossa sociedade.
Tal como dizia John. F. Kennedy, em 1961, na sua mensagem ao Congresso dos EUA, “the ultimate answer to ethical problems in government is honest people in good ethical environment. No web of statute or regulation, however intricately conceived, can hope to deal with the myriad possible challenges to a (person)’s integrity or his devotion to the public interest.”
É também nesta perspetiva, frequentemente esquecida, que julgo que devemos entender o mecanismo recentemente aprovado pelo governo. Podemos discutir se o acervo de mecanismos de que dispomos é adequado. Só o tempo e a avaliação da sua aplicação prática o dirão. Mas é inegável que deveremos sempre ter a capacidade de, numa análise desapaixonada, identificar aquilo que está ou não a funcionar e ter o discernimento para desenhar e aplicar mecanismos novos sempre que necessário para promover a cultura ética em toda a sociedade.
Quando reli recentemente o “Livro do Desassossego”, não pude deixar de sorrir quando me deparei com este segmento: “Na vida de hoje, o mundo pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.” Fernando Pessoa não tinha smartphone, internet e redes sociais. Mas suspeito que hoje diria a mesma coisa.
Não podemos nem devemos negar que têm acontecido diversos episódios com um potencial perigoso de minar a confiança das pessoas nas instituições democráticas. Por isso é necessário resolvê-los com prontidão e determinação. Mas no estado de hiperexcitação coletiva que vai sendo perigosamente normalizado, estamos a criar riscos novos. Sempre que lançamos um manto de suspeição sobre todas as pessoas que exercem funções públicas, por factos ou suposições que não têm objetivamente relevância comparável, estamos a colocar todas as pessoas no mesmo saco com quem de facto transgride a lei ou a ética. Tal apenas beneficia estes últimos e aumenta o risco de muitas pessoas se autoexcluírem do exercício de funções públicas. E beneficia também os extremistas e populistas que estão empenhados na degradação das instituições democráticas.
Mas não estamos condenados à exacerbação da excitação e da superficialidade. Está na mão de todos a defesa da ética e da democracia. Com serenidade e honestidade intelectual. E sem desassossego.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Fátima Fonseca, Jornal Expresso, 18 de janeiro de 2023