Eutanásia – Esta foi sempre a lei do Luís Marques e dos que não podem manifestar-se
Por duas vezes o PR não promulgou o que o Parlamento aprovou. Na segunda invocou dúvidas por causa da variabilidade terminológica. Já não estamos nesse ponto.
Estamos perante um diploma sobre uma matéria que gravou em nós esta certeza: “o direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância” (palavras do TC).
O que tivemos de fazer foi, em respeito pela pronúncia do TC, densificar conceitos.
Fizemos formalmente um novo diploma, pelo que a democraticidade é imaculada. Enquanto escrevo, não sei quando será votado o diploma que leva uma década de reflexão e que uniformiza todas as definições dos conceitos essenciais.
Penso que não há, em termos de direito comparado ou nacional, conceitos mais densificados do que estes nem lei mais defensiva. Entendo que insistir na inconstitucionalidade deste projeto levaria a que se tivesse de ter por inconstitucionais, por enorme maioria de razão, muitas normas atualmente em vigor (v.g., a norma que permite o “aborto eugénico”). Não há qualquer celeuma médica na aplicação deste preceito, elaborado assim pelo legislador precisamente porque o legislador não é médico, mas pergunto se esta norma é mais ou menos densificada do que alguma das normas basilares do projeto de lei que nos ocupa. A coerência é um valor fundamental que deve imperar em todos os órgãos de soberania, e a AR fez o trabalho que se impunha e que o TC tão bem delineou.
Por duas vezes a AR aprovou, por bastante mais do que a maioria absoluta de deputados, a despenalização da morte assistida. Uma lei que, em suma, reconhece isto: em casos estritamente delimitados, a irreversibilidade da degradação física e o sofrimento atroz por ela provocado justifica aceitar a vontade de antecipação da morte de quem experimenta esse fim de vida difícil de adjetivar. Não podemos ignorar a gigantesca legitimidade de uma lei que o povo insiste em dizer que quer ver aprovada.
Por duas vezes o PR não promulgou o que o Parlamento aprovou. Sim, na segunda vez invocou dúvidas de interpretação jurídica por causa da variabilidade terminológica. Já não estamos nesse ponto.
A referida variabilidade terminológica está ultrapassada. E consta da lei o que a AR entende que deve constar da lei.
Em nenhum dos países que legalizam o suicídio assistido (por vezes por imposição dos seus Tribunais Constitucionais) a morte medicamente assistida se limita a casos em que a pessoa se encontra em situação de morte iminente. No Canadá, o Supremo Tribunal do Quebeque considerou inconstitucionais as normas que limitavam o acesso à morte medicamente assistida às pessoas que estivessem em situação próxima do fim da vida. Segundo o Tribunal, normas desse tipo criam discriminações entre indivíduos com base nas suas deficiências físicas e impedem as pessoas que sofrem de uma doença incurável grave, mas não terminal, de poderem autodeterminar a sua morte, enquanto pessoas numa situação semelhante, mas cuja morte está mais próxima no tempo, podem legalmente aceder à morte medicamente assistida.
Esta é, e sempre, a lei do Luís Marques. Luís Marques tinha 63 anos, estava paraplégico há 55 e percorreu mais de dois mil quilómetros para concretizar uma morte assistida negada em Portugal.
Esta sempre foi a lei do imenso silêncio forçado das pessoas que nos escreveram e telefonaram a exigir escolher mas sem forças para fazerem uma manifestação.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Isabel Moreira, Jornal Expresso, 02 de dezembro de 2022