Já estivemos mais longe
Desde que o TC se pronunciou, tenho recebido mails de doentes que expressam zanga. Tento explicar que o direito à zanga e à crítica é legítimo, mas que discordando embora do TC, temos de o respeitar, como sempre.
Há muitos anos, a deputada Maria Antónia Almeida Santos, eu própria e os deputados João Semedo e José Manuel Pureza fomos conversar. Havia um enorme movimento em defesa da eutanásia. Desde então, o mergulhar intenso em histórias concretas que generosamente se cruzaram connosco, fez desta causa uma das lutas mais duras em termos de resistência emocional. Uma lei aprovada repetidas vezes por maioria invulgar já foi ao TC duas vezes e já foi vetada politicamente. Agora, o TC centra-se na conjunção “e” e há uma série de declarações de voto que nos obrigam a pensar para além do “e”. Lá atrás, o João Semedo disse que esta seria um dia a vitória da tolerância, mas que contássemos com pequenos passos. Como agora, em que os argumentos principais do PR não foram acolhidos e que a maioria dos juízes claramente tem por injustificada a perseguição penal. Mas de cada vez dói e de cada vez falamos com doentes.
Conheço vários pelos nomes, de alguns já me despedi, gente anónima à espera de uma lei que, desde a sua primeira versão, é a mais defensiva que conheço. Numa situação tão dura, tão frágil, há gente que encontra espaço para dizer-nos que a lei vai acontecer, que não desistamos. Sempre que se adia uma lei que não deve nada a todas as leis análogas em vigor em países como o nosso (em vários foi o próprio TC que impôs a sua existência), lembro-me da última vez que falei com o João Semedo, já por mensagem escrita, e sei da força e da convicção e do desejo imenso de que fossemos um país tolerante. Por isto tudo, este é o processo legislativo mais visceral das nossas vidas. Desde que o TC se pronunciou, tenho recebido e-mails de doentes que expressam zanga. Expressam zanga por ser tão difícil ao TC português deixar passar uma lei como esta. Expressam zanga quando veem a cada passo aparecem novos argumentos hipotéticos, como que num jogo. Tento explicar que o direito à zanga e à crítica é legítimo, mas que discordando embora do TC, temos de o respeitar, como sempre.
Quando a lei foi aprovada por 129 votos, expliquei que a insistência no critério da “indeterminabilidade”, que tem sido usado pelo TC na questão dos animais, na gestação de substituição, na autodeterminação da identidade de género, levanta questões complexas. Alertei para conceitos em vigor, como o de “malformação do feto”, mas há centenas de normas reguladoras de direitos fundamentais que usam conceitos indeterminados. É claro que o TC não limita a inconstitucionalidade ao que flagrantemente viole a CRP, respeitando a margem de decisão do legislador. Vai muito mais longe. Em declarações de voto, há quem se manifeste, pela primeira vez, sobre se a eutanásia deve ter carácter subsidiário. Isto leva a pensar no que seria hoje a avaliação da lei da IVG, se para além de se pôr em causa o conceito de “malformação do feto”, chegar-se-ia a exigir ao legislador que especificasse o método clínico. Estas são questões que nos colocam, como outras, tais como as avançadas por Miguel Prata Roque: serão constitucionais conceitos como os presentes no homicídio privilegiado? Os exemplos não acabam e a preocupação é legítima. A zanga também, mas se temos direito a discordar do TC o nosso dever é respeitar e acatar sempre as decisões em causa. E é com base na última decisão que faremos uma versão da lei que — esperemos — acabe de vez com as dúvidas, porque, como o PR afirmou, o Acórdão dá pistas para isso. Como diria o João Semedo, “já estivemos mais longe”.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Isabel Moreira, Jornal Expresso, 10 de fevereiro de 2023