Lusa Pública: de todos ou do Governo?
O Estado português adquiriu recentemente a totalidade do capital social da Lusa, tornando a agência de notícias pública. A decisão implica um novo modelo de governação, do qual se vão sabendo as primeiras novidades. E é aqui que as questões se começam a colocar.
Que a Lusa seja pública é inquestionável. Numa época de desinformação acelerada e de fragilização do jornalismo tradicional, ter uma agência de notícias de referência, financiada pelo Estado mas ao serviço de todos, é fundamental para a democracia portuguesa. O problema não está na propriedade pública. O problema está em garantir que “pública” signifique “de todos” e não “do Governo de turno”.
Ao que se sabe, o modelo proposto pelo executivo PSD/CDS prevê três administradores nomeados pelo Governo, com mandatos de quatro anos, e a criação de um Conselho Consultivo com composição plural. Este Conselho terá 13 elementos, incluindo representantes do parlamento, das regiões autónomas, das autarquias, dos trabalhadores e das associações setoriais. As suas funções? Acompanhamento e monitorização. O problema? São meramente consultivas.
Traduzo: o Governo nomeia sozinho os três administradores. O Conselho Consultivo pode opinar, mas não decide. Esta é a diferença fundamental entre o modelo que se anuncia e aquele que o PS defendeu em 2023.
Pedro Adão e Silva, então ministro da Cultura, foi claro: o Estado não poderia ter 95% da Lusa sem alterar profundamente o modelo de governação, garantindo a participação efetiva do setor da comunicação social, os principais clientes da agência. A proposta preparada pelo PS apontava para um órgão plural com poderes vinculativos para designar o Conselho de Administração. Um Governo de maioria absoluta que optou por não decidir sozinho, pelo entendimento da importância de garantir consenso alargado numa matéria fundamental para a democracia. Esse consenso foi quebrado pela crise política, mas a lógica mantém-se válida.
Compreendo a dificuldade. Nenhum Governo gosta de abdicar de poder de nomeação. Mas este não é um cargo qualquer. A Lusa não é um instituto público ou uma empresa de capitais públicos como tantas outras. É a única agência de notícias de um país que enfrenta um deserto noticioso. A sua credibilidade depende da sua independência. E a sua independência não se garante apenas com boas intenções ou declarações solenes.
Precisa-se de estruturas que resistam ao tempo e às alternâncias políticas. Estruturas que assegurem que nenhum governo, de nenhuma cor política, possa capturar a agência para os seus interesses. O escrutínio parlamentar regular é positivo, mas é controlo a posteriori. Precisamos de controlo a priori, de um órgão com legitimidade plural que partilhe a decisão sobre quem dirige a Lusa.
Não estamos a inventar nada. Outros países europeus já percorreram este caminho. A BBC tem um Board com membros nomeados através de processo independente. A France Télévisions tem um Conselho de Administração onde nem todos os membros vêm do Governo. São modelos diferentes, mas que partilham o mesmo princípio: diluir o poder político direto sobre a nomeação dos órgãos de gestão.
A União Europeia aprovou recentemente o Media Freedom Act (EMFA), que permite explicitamente que os Estados sejam proprietários a 100% de meios de comunicação de serviço público. Mas o regulamento europeu é claro: esta propriedade tem de vir acompanhada de “garantias eficazes” contra ingerências políticas. O EMFA identifica governos e entidades públicas como ameaças recorrentes à independência editorial. Um modelo onde o Governo nomeia sozinho toda a administração, mesmo com um conselho consultivo ao lado, não cumpre este requisito mínimo. O controlo real continua concentrado no Executivo.
Esta fragilidade expõe Portugal ao escrutínio do Comité Europeu dos Serviços de Comunicação Social e da Comissão Europeia, que monitorizam a aplicação do EMFA. O regulamento obriga os Estados a designar autoridades independentes, livres de influência política, para acompanhar estas estruturas de governação. Exige também medidas internas que garantam decisões editoriais autónomas. Um conselho que apenas emite pareceres não vinculativos não responde a estes padrões. Arrisca críticas europeias e, mais importante, compromete a credibilidade da Lusa como agência verdadeiramente independente.
A Lusa serve o país há décadas. Fornece informação credível a jornais, rádios, televisões e cidadãos. É património de todos os portugueses. Por isso mesmo, merece um modelo de governação que proteja a sua independência não apenas dos poderes económicos, mas também dos poderes políticos.
O Governo deve apresentar a sua proposta com clareza, e apresentar ao Parlamento para que este debate se faça. O PS defenderá sempre propostas concretas para reforçar a pluralidade na governação da Lusa. O PSD e o CDS devem explicar por que razão consideram suficiente um Conselho meramente consultivo. E todos os partidos democráticos devem compreender que uma agência verdadeiramente independente serve melhor o país do que uma agência demasiado próxima de qualquer executivo.
A propriedade pública da Lusa é uma conquista. A sua governação plural ainda está por construir. Falta dar esse passo.
Fonte: Paulo Lopes Silva, Público, 19 de dezembro de 2025
