Moldar o futuro do trabalho no sector público
O sector público parece estar particularmente bem posicionado para atrair e manter trabalhadores que desejam qualidade de vida e um emprego que dê sentido à sua existência e não meramente algo que se faz. Mas é necessário dispor dos instrumentos que lhe confiram atratividade real: não só enquadramentos jurídicos que definem possibilidades, mas ações de gestão aplicadas no funcionamento quotidiano dos serviços públicos.
As ondas de contestação laboral na Administração Pública (AP) são um forte impulso para olharmos com profundidade para o trabalho no sector público. E também um convite a atuar com responsabilidade, num diálogo que constitua um verdadeiro processo de cocriação de um sistema de emprego público de sucesso neste novo mundo do trabalho que está num processo transformador tão profundo como aquele que se deu com a revolução industrial.
Hoje, a própria consciência do trabalho está a mudar profundamente, o que torna evidente que, como afirma Lynda Gratton (“A mudança, o futuro do trabalho já chegou”) é tão imprudente ignorar as mudanças quanto é ingénuo supor que aquilo que resultou no passado resultará no futuro. Reconhecer a necessidade de alterar pressupostos é a forma para nos prepararmos para múltiplas possibilidades, caminhos e oportunidades. E, naturalmente, para desafios que a pandemia da covid-19 tornou ainda mais óbvios: a necessidade de termos organizações orientadas pelo seu propósito, e não centradas em si mesmas, que desenvolvem culturas resilientes e processos contínuos de ajustamento (Keith Ferrazzi, “Competir no novo mundo do trabalho, como a adaptabilidade radical separa os melhores dos restantes”).
São cada vez mais comuns fenómenos como a grande demissão (Great Resignation), o facto de os trabalhadores se despedirem em massa em busca de um emprego que lhes garanta uma melhor qualidade de vida (com especial impacto nos EUA mas que já parece constituir uma tendência mais global); a demissão silenciosa (Quiet Quitting), a decisão do trabalhador de limitar as suas tarefas àquelas estritamente necessárias dentro da sua função, cumprindo o seu contrato dentro do seu horário e evitando longos períodos e sobrecarga de trabalho extra não remunerado; ou a mudança frequente de emprego de forma voluntária (Job Hopping). Apesar de ainda não se fazerem sentir em Portugal da mesma forma, estes são sinais de uma alteração das atitudes e expectativas das pessoas perante o trabalho.
Estes desafios também se colocam às administrações públicas de muitos países, que lidam com uma força de trabalho cada vez mais envelhecida e com problemas de atratividade para as novas gerações: dados da Direção-Geral da Administração e do Emprego Público demonstram que, em Portugal, em 30 de junho de 2022, 64,5% dos mais de 740 mil postos de trabalho das administrações públicas correspondiam a trabalhadores com 45 e mais anos e que a idade média está nos 48 anos.
Com a incerteza e os desafios complexos que as administrações públicas enfrentam e que requerem uma postura inovadora e antecipatória, garantir que os serviços públicos tenham uma força de trabalho apta para o futuro, multigeracional, capacitada e motivada, exige que quem gere, seja o Governo sejam as lideranças organizacionais, faça escolhas viáveis e sustentáveis.
Não podemos negar a exigência do tema. A AP, para além de ter de lidar com uma força de trabalho multigeracional, emprega profissionais em áreas de atividade muito distintas, com vínculos jurídicos e mecanismos de gestão também diversos, umas com funções mais administrativas e outras de funcionamento operacional ininterrupto. Importa, pois, definir uma estratégia e uma política de recursos humanos que combine vários instrumentos para gerir todos os talentos, em todos os tipos de postos de trabalho e que abranjam toda a duração das carreiras dos trabalhadores.
E, apesar de o tema salarial ser um fator básico e aquele em que se centram as atenções, sobretudo numa época de crise, é imprescindível que não se perca o foco em todas as dimensões que são importantes para atrair, manter, motivar e manter produtivos os trabalhadores da administração pública, pois têm também impactos significativos os processos de recrutamento céleres e, se necessário, direcionados a grupos específicos; a perspetiva de progressão na carreira; ter lideranças reconhecidas e inspiradoras; um trabalho com propósito; reverem-se nos valores da organização; flexibilidade (geográfica e horária) no trabalho; equilíbrio entre a vida pessoal e profissional; reconhecimento e valorização do trabalho realizado; possibilidade de participar ativamente na vida do seu serviço; formação e oportunidades de desenvolvimento; e a promoção de culturas organizacionais saudáveis (como destaca um estudo da Ordem dos Psicólogos Portugueses divulgado este ano sobre Custo do Stresse e dos Problemas de Saúde Psicológica no Trabalho em Portugal).
Pela natureza das suas missões, o sector público parece estar particularmente bem posicionado para atrair e manter trabalhadores que desejam qualidade de vida e um emprego que dê sentido à sua existência e não meramente algo que se faz. Mas é necessário dispor dos instrumentos que lhe confiram atratividade real: não só enquadramentos jurídicos que definem possibilidades, mas ações de gestão aplicadas no funcionamento quotidiano dos serviços públicos.
E para serem efetivos, estes instrumentos têm de ser desenvolvidos, aplicados e avaliados com o envolvimento dos trabalhadores, em diálogo social, com abertura e ponderação, num processo necessariamente iterativo e permanente. Por isso, este é um caminho necessariamente enquadrado pela Agenda para o Trabalho Digno, que responde aos principais desafios do mercado de trabalho, e também pelo Acordo Plurianual de Valorização dos Trabalhadores da Administração Pública, que pretende prosseguir o caminho de valorização, capacitação e rejuvenescimento da AP em diálogo com os sindicatos.
Como afirma James Suzman (“Trabalho, Uma história de como utilizamos o nosso tempo”), somos uma espécie profundamente resistente a efetuar alterações de fundo em comportamentos e hábitos, mesmo quando é claro que temos de o fazer. Mas quando a mudança nos é imposta, como no tempo da pandemia, somos extraordinariamente versáteis. É tempo de demonstrar que também somos capazes de o fazer de forma planeada e consciente, com salvaguarda de direitos e exercício de responsabilidades, atuando com visão e determinação para moldar o futuro do trabalho no sector público.
O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico
Fonte: Fátima Fonseca, Jornal Expresso, 28 de fevereiro de 2023