Montenegro e o discurso que faz nascer inimigos
Parece incompreensível que o primeiro-ministro de um dos países mais seguros adote um discurso de “combate sem tréguas” ao crime ou de “mão pesada”, quase replicando líderes da direita populista.
Odair Moniz foi baleado por um polícia e morreu e as circunstâncias em que, na sua família e círculo de próximos, se acredita que tal ocorreu geraram ondas de indignação e levaram para a rua pessoas que provocaram desacatos, causaram danos e transtornaram a vida dos seus vizinhos e dos polícias incumbidos da preservação da ordem. Num país onde os números provam a sobrerrepresentação de pessoas negras e pobres nas estatísticas da violência policial, não é indiferente a circunstância de Odair o ser (ou ter sido, porque hoje, infelizmente, a pessoa que era ou que poderia vir a ser deixou de existir).
À indignação dos seus próximos não é seguramente alheia a convicção que têm de que a reação policial terá sido desproporcional e injusta numa sucessão de momentos (já foi desmentido que Odair conduzisse um carro furtado, as notícias também já informam que o polícia que o baleou terá reconhecido que ele não empunhava qualquer arma branca, circularam gravações de imagem e voz que fizeram supor que não foi prestado imediatamente o socorro devido, família e amigos enlutados afirmam que polícias não identificados e sem mandado arrombaram a porta da casa onde choravam a sua perda e os intimidaram ou agrediram).
A dor e a indignação não legitimam a violência e, confrontados com os episódios de que fomos espetadores, a prioridade devia ser o restabelecimento da paz. No contexto que se conhecia, a única forma de contribuir para a paz era assegurar que num Estado de Direito não se admite a vingança privada porque a justiça se aplica a todos. Que o processo criminal foi instaurado e os suspeitos constituídos arguidos, que os processos disciplinares estão em curso e que as pessoas sob investigação foram afastadas das funções estritamente policiais. Que todas as vidas têm o mesmo valor.
Não foi esse, porém, o discurso de muitos políticos. Ventura, depois de já ter afirmado publicamente que o polícia que baleou e matou Odair Moniz devia ser condecorado, entusiasmou-se consigo próprio na reunião plenária da Assembleia da República e justificou a declaração pretérita , “O polícia que matou Odair atravessou-se por todos nós, deu o corpo às balas por todos nós”. Não se lembrou sequer de que foi outro o corpo trespassado por uma bala e que foi outra a vida perdida.
O líder parlamentar do PSD, no mesmo plenário, proclamou que, em princípio, “as forças e serviços de segurança deste país atuam dentro do quadro da legalidade e é com eles que nós estamos, é a eles que queremos fazer o nosso reconhecimento e prestar a nossa gratidão”. Não lhe ocorreu que o contexto era especialmente desadequado à escolha de um lado, a não ser que o lado escolhido fosse exclusivamente o da defesa do Estado de Direito.
Um deputado do CDS-PP, partido que também suporta o Governo, foi ainda um pouco mais longe. Referindo-se ao polícia que baleou Odair Moniz, considerou que naquela situação o Estado de Direito era ele. É uma afirmação particularmente chocante num momento em que todos sabemos que correm processos de cariz criminal e disciplinar para avaliar se a sua atuação foi lícita ou se, pelo contrário, foi criminosa e, por isso mesmo, contrária ao Estado de Direito.
Não se vê como possam proclamações desta índole contribuir para a paz e para uma restauração rápida da ordem e da segurança. Como possam ajudar a conter a indignação dos que se manifestam, por vezes com uma violência que é inaceitável. Assim como parece particularmente incompreensível que o primeiro-ministro de um dos países mais seguros do mundo tenha escolhido adotar como prioridade um discurso político-criminal de “combate sem tréguas” à criminalidade ou de “mão pesada”, quase réplicas do que já ouvimos pela boca de líderes da direita populista, com péssimos resultados até em outros contextos geográficos. Todos achamos que a criminalidade deve ser prevenida e reprimida, mas é duvidoso, para dizer o mínimo, que o melhor caminho seja o da eleição de inimigos dentro das nossas próprias comunidades.
Não há nada de novo neste discurso político-criminal, hiperbolizado em séries como The Boys, de Eric Kripke. Ouvimo-lo e temos a sensação de que regressámos aos anos 80 do século passado e que estamos num encontro de consultores do Presidente Reagan. O mundo divide-se em bons e em maus, porque não há heróis sem vilões. Quem se quer apresentar como salvador, precisa de inimigos. Não há Super-Homem sem Lex Luthor, nem Batman sem Joker. Os políticos populistas precisam de inimigos e precisam que os seus inimigos tenham rosto.
Pelo contrário, o que se acha (e aquilo que confirmam os estudos internacionais sobre os países onde morrem mais polícias e onde mais civis são mortos pela polícia) é que a proteção das nossas forças e serviços de segurança pressupõe uma cultura de legalidade e de respeito que vale para todos, respeito pelos nossos agentes das forças e serviços de segurança e respeito por todos os cidadãos com quem quotidianamente lidam. Cidadãos, sempre. Todos eles. Cidadãos e nunca inimigos.