Nós e a Ucrânia
Se abandonarmos o povo ucraniano à sua sorte, se o cansaço puder connosco, a Europa sofrerá a sua maior derrota de sempre e marcará negativamente o devir no século XXI.
Portugal vive a sua semana de frio anual. Os termómetros registam mínimos anuais, e o frio é tema de conversa. As eleições no nosso país e a guerra instalada na Faixa de Gaza, que vai dizimando um povo prisioneiro e sofredor a quem os “falcões” de Telavive e os terroristas do Hamas não dão descanso, vão ocupando a agenda mediática. A Guerra na Ucrânia vai perdendo prioridade e o impulso cidadão na defesa das fronteiras ucranianas regista os mais baixos níveis de visibilidade desde 24 de fevereiro de 2022.
Mas é preciso resgatar a centralidade desta guerra. Se não o fizermos e abandonarmos o povo ucraniano à sua sorte, se o cansaço puder connosco, a Europa sofrerá a sua maior derrota de sempre e marcará negativamente o devir no século XXI. Se a Europa de que fazemos parte não perceber que a sua unidade, que vai quebrando pela extrema-direita, onde Órban é apenas a cara mais visível, é condição para enfrentar as tentações expansionistas da Federação Russa, podemos entrar num inverno europeu, onde a ascensão de forças totalitárias ganha peso eleitoral, financiamento, enquanto anseia por um possível regresso de Trump.
As democracias europeias – a paz da Europa – durante mais de metade do século XX foram afirmadas (e reafirmadas) numa derrota do fascismo e na recusa do “socialismo real” dos soviéticos. Essa paz foi construída com o sangue de milhões de europeus, com a perseguição de judeus, ciganos, homossexuais, entre outras minorias. Um combate que hoje é feito no Donbass, e em muitas cidades e vilas da Ucrânia que defendem o seu direito à escolha, à liberdade e à pertença a um modelo social de cariz europeu e ocidental, onde nos revemos.
Putin faz a guerra, combate as minorias como vimos recentemente, procura interferir no jogo democrático, como se viu no “Brexit” ou na Catalunha, anseia pela derrota de Biden, e quer usar a terrível guerra em Israel e na Palestina para desmobilizar a atenção que a invasão da Ucrânia merece e deve ter. Procura furar as “ansiosas” sociedades democráticas que querem o fim da guerra.
O Natal na Ucrânia foi duro; foram centenas de ataques de mísseis de cruzeiro e drones de ataque. Em Kyiv a vida corre num sobressalto contínuo, na angústia do toque de sirene seguinte, mas numa terrível normalização do medo. Quando há meses estivemos em Kyiv – numa delegação da Assembleia da República –, experimentámos esse medo, o recolhimento ao bunker, mas também a rotina de uma resistência patriótica que a Europa não pode deixar de apoiar. O levantar quotidiano de uma comunidade que Zelensky dirige e que merece a nossa solidariedade ativa. Pelos ucranianos, mas também por nós.
Uma mobilização cidadã que não pode deixar de estar alerta, quando o Conselho da União Europeia terá a Hungria como presidente, no segundo semestre de 2024, depois de umas eleições europeias que têm de enviar uma mensagem clara a Putin: a retirada russa de solo ucraniano é a única forma de terminar esta guerra.
A nossa resistência e a defesa da causa ucraniana também se fazem com mais democracia, com uma derrota clara da extrema-direita em toda a Europa, preservando um modelo social numa Europa livre e democrática. Até lá há que resistir; pela Ucrânia, mas também por nós.
Fonte: Eurico Brilhante Dias e Diogo Leão, Jornal Público, 15 de janeiro de 2024.