Numa relação
Existe um caminho a percorrer para refundar a confiança das pessoas nas instituições democráticas, um caminho com inúmeros desafios.
A data de ontem, simpatizemos ou não com ela, é uma oportunidade para refletir sobre relações. O clima que se tem vivido um pouco por todo o mundo, com crescentes níveis de abstenção nos processos eleitorais e movimentos sociais de contestação da ação governativa, nomeadamente face à crise socioeconómica, obriga-nos a refletir sobre a relação entre os cidadãos e quem tem responsabilidades formais de governar a sociedade. Também o facto de, no passado dia 26 de janeiro, termos celebrado, em Portugal, o Dia Nacional da Participação e de, no último fim de semana, termos assistido à realização de um referendo local, numa freguesia de Lisboa, sobre o eventual alargamento das zonas de estacionamento pago nessa freguesia, reforçam a necessidade da mesma reflexão.
Todos conhecemos estudos que demonstram a crise de confiança dos cidadãos nas instituições democráticas. Um fenómeno que se tornou global e é causa e consequência de populismos, que se alimentam dessa circunstância. Dados como os que resultam do estudo da GALLUP, divulgados em julho do ano passado, demonstram que os níveis de confiança dos americanos nas principais instituições dos EUA estão baixos, um fenómeno recorrente nos últimos 15 anos, mas que atingiu um novo mínimo. Dados da Trust Survey, da OCDE, também de julho do ano passado, relativos à confiança das pessoas em diferentes níveis de governo em Portugal, estão em linha com os resultados do conjunto dos países do estudo, com níveis na ordem dos 40%. Também dados do Eurobarómetro mostram que a percentagem de pessoas que confiavam no Governo, em Portugal, entre 2009 e 2015, estava abaixo da média da UE, e, desde 2016, tem estado acima da média da UE.
Um indicador positivo é que parece existir recetividade de muitas pessoas a um maior envolvimento na vida democrática, dimensão essencial para reconstruir a confiança. A participação dos cidadãos está prevista na nossa Constituição como tarefa fundamental do Estado, lei fundamental que, na sua 1ª revisão, passou mesmo a assumir o aprofundamento da democracia participativa, ou seja, diversas formas de envolvimento dos cidadãos na tomada de decisões que vão além dos mecanismos tradicionais da democracia representativa. A participação cívica permite melhores decisões, procurando consensos e aumentando as possibilidades de sucesso das políticas, mas exige compromisso claro por parte dos atores políticos para devolver aos cidadãos parte do poder do qual são tradicionalmente detentores.
O desafio é saber fazer esse caminho, porque cada sociedade terá de encontrar o seu mix de políticas e instrumentos que desenvolvam um espaço cívico forte, isto é, as condições, legais, políticas, institucionais e práticas que são necessárias para que os atores não governamentais acedam a informação e participem na vida pública. Assembleias de cidadãos, plataformas consultivas, iniciativas de crowdsourcing, ativismo cívico, Orçamentos Participativos, o programa Bairros Saudáveis e muitos outros exemplos emergiram nos últimos anos. Portugal, membro da iniciativa multilateral Open Government Partnership, que visa promover os ideais de um governo aberto e participativo do século XXI, é mesmo um dos países com maior percentagem de Orçamentos Participativos a nível local e foi o primeiro país a implementar um orçamento participativo de âmbito nacional, um processo que foi avaliado e revisto em 2021, para reforçar a sua eficácia numa próxima edição.
Existe, pois, um caminho a percorrer para refundar a confiança das pessoas nas instituições democráticas, um caminho com inúmeros desafios. Por um lado, assumir que é natural que o regime democrático esteja em perpétua reinvenção e que é necessário um processo permanente de autorreflexão das instituições e dos seus protagonistas. Por outro lado, promover a participação ativa das pessoas parece ser a melhor via para (re)construir uma relação saudável entre governo e cidadãos e para isso deveremos estimular o nosso capital social, seja na aceção de sociólogos ou cientistas políticos, um capital que é essencial à vida económica, social e política na medida em que potencia a capacidade das pessoas trabalharem em conjunto para fins comuns, unidas por valores fundamentais para a vida em sociedade. Por fim, é necessário ter coragem para inovar, desafiando as ortodoxias ideológicas e institucionais. Como dizia Hannah Arendt, num texto dos anos 50 do século passado, a coragem é a primeira de todas as virtudes políticas, porque só saindo da nossa existência privada podemos aceder ao mundo público comum que é o nosso espaço realmente político.
É neste espaço comum que as relações saudáveis entre cidadãos e instituições devem ser construídas. Um capital social renovado que permita complementar as instituições representativas com uma dinâmica participativa que confira às pessoas espaço para moldar as suas vidas, a partir de uma opinião esclarecida, mobilizando saberes e, numa dinâmica processual, construir soluções. Renovar a democracia exige que todos tenhamos a capacidade de substituir o antagonismo do Eles pela cooperação do Nós. Porque na sociedade livre, justa, próspera e inclusiva que queremos, ninguém é mero observador externo.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Fátima Fonseca, Jornal Expresso, 15 de fevereiro de 2023