Quinta-feira, 8 Setembro, 2022
O admirável Gorbachev
Autor: Paulo Pisco
Meio: Jornal Diário de Notícias
Mikhail Gorbachev foi uma das personalidades mais extraordinárias da segunda meta- de do século XX. Faleceu em Mos- covo com 91 anos, distanciado do regime instaurado por Vladimir Putin, que nem sequer foi ao seu funeral.
Gorbachev foi precisamente o oposto de Putin na sua ação política. Enquanto Gorbachev abriu o sistema totalitário, deitou abaixo a “Cortina de Ferro”, devolveu a soberania às repúblicas soviéticas e pro- curou uma aproximação ao Ocidente, Putin vai fechando cada vez mais o regime no seu nacionalismo e autoritarismo, sedento de recuperar o império perdido e de manter a sua esfera de influência, isolado do mundo, imaginando ameaças para justificar ouso da sua força bruta e desumana e a pobreza de sua governação, que deixa o povo à míngua de bem-estar e de liberdades.
Gorbachev conseguiu furar um sistema totalitário, repressivo, de elites políticas que nunca cuidaram do bem-estar do povo, nem das suas liberdades, em nome de uma ideologia falhada, persecutória e sanguinária, que mostrou o seu pior rosto durante o estalinismo. E furar um sistema totalitário é muito difícil, porque a sua máquina repressiva tem vida própria e é avessa a transformações. Ao longo das sete décadas dos amanhãs que cantam tudo ficou terrivelmente na mesma, enquanto o império estendia os seus tentáculos ideológicos a outras regiões do globo para alargar o poder e justificar a sua existência. Que ideologia pode ter valor senão proporcionar às pessoas vidas dignas, justiça, felicidade e liberdade?
E, no entanto, Gorbachev teve a coragem e a sabedoria para implementar mudanças profundas num país totalmente ineficiente, com uma economia que era um fiasco completo, incapaz de continuara sustentar financeiramente a loucura da corrida aos armamentos e a manter a repressão nas repúblicas soviéticas, em que o regime reinava na maior opacidade e impunidade, com demasiados presos políticos.
As elites russas sempre tiveram muito presente o sentido do império, da Grande Rússia, o maior país do mundo atravessado por 11 fusos horários, mais preocupadas em do- minar os imensos territórios do que em cuidar do bem-estar das populações. E por isso, ao longo da História, quem quer que reinasse, czar após czar, até hoje com Putin e a sua guerra brutal na Ucrânia, o derramamento de sangue e o sofrimento causado aos povos nunca foi motivo de comoção. Por alguma razão, muitos dos povos que se libertaram do jugo russo têm hoje medo da Rússia, porque a História lhes ensinou na carne e no espírito o que é ser servo, o que é obedecer a quem não respeita a dignidade humana e os Direitos Fundamentais.
Por isso, acabar por dentro como totalitarismo é um feito notável, mesmo que tivesse depois regressa- do de outra forma após a renúncia de Gorbachev e do desnorte que foi a implosão da URSS e da perda de mais de uma dezena de países anexados e mantidos com mão de ferro.
Hoje impera um autoritarismo que leva, mais uma vez, o povo russo à penúria, que o arrasta para guerras insensatas, que continua a encheras prisões com opositores ao regime ou personalidades incómodas, em que muitas desaparecem ou aparecem mortas.
Gorbachev foi o homem da abertura (glasnost) e da reestruturação (perestroika) num país onde isso era um tabu absoluto. Acabou com o equilíbrio do terrore com a angústia que pesava sobre os povos de uma guerra nuclear, pôs fim à “Guerra Fria” e ao atoleiro em que se transformara a guerra no Afeganistão, Foi, de facto, um homem notável, corajoso, humanista, visionário, que pretendeu acabar com séculos de sofrimento do seu povo, que a História e as notáveis narrativas dos grandes escritores russos muito bem retratam.
No final, será Gorbachev que fica- rá para a História como um homem de Estado admirável. Para Putin, talvez aquilo que a História lhe reserva seja tão só um banco dos réus.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Paulo Pisco, Diário de Notícias, 07 de setembro de 2022