O monstro debaixo da cama
No início deste mês, na AI for Good Global Summit, a principal plataforma das Nações Unidas que promove a inteligência Artificial (IA) para potenciar os objetivos de desenvolvimento sustentável, realizou-se uma conferência de imprensa com pessoas e robots, muitos deles concebidos para parecerem seres humanos, que responderam às questões dos jornalistas. Este é mais um mote para refletirmos sobre o impacto da IA, em particular no futuro do trabalho.
Todas as revoluções tecnológicas, desde a revolução agrícola à revolução industrial, trouxeram enormes mudanças na organização do trabalho e suscitaram receios. Agora não é diferente com a IA. O impacto da IA no mercado de trabalho ainda tem pouca evidência empírica: os números variam consoante os estudos, mas o Parlamento Europeu, que se prepara para aprovar a primeira regulamentação abrangente sobre IA a nível mundial, a OCDE, o World Economic Forum e diversas consultoras convergem nas conclusões: o uso de IA no local de trabalho resultará tanto na eliminação de um grande número de postos de trabalho como criará novos que geram mais valor, eliminará tarefas perigosas, libertará a força de trabalho para funções mais qualificadas, substituindo tarefas repetitivas através da robótica e da automação, reduzindo erro humano e gerando benefícios económicos através do aumento da produtividade.
Na edição deste ano do Employment Outlook, a OCDE estima que, apesar da ainda baixa adoção de IA pelas empresas, as ocupações classificadas como de maior risco de automação representam cerca de 27% do emprego. Portugal terá cerca de 30% dos seus postos de trabalho impactados pela IA, sendo um dos oito países com maior percentagem dos empregos ameaçados. E ninguém está imune a este impacto: contrariamente às vagas anteriores de progresso tecnológico, que estiveram associadas à automação de tarefas rotineiras e à substituição de trabalhadores com ocupações que exigiam baixos níveis de qualificação, agora estamos a falar de potencial substituição de trabalhadores em profissões com elevados níveis de qualificação, tarefas não rotineiras e que exigem raciocínio abstrato, criatividade e inteligência social.
Assim, apesar de a OCDE concluir que as ocupações de alta qualificação (como analistas de sistemas e programadores, matemáticos, contabilistas, intérpretes e tradutores, revisores e copywriters e algumas profissões jurídicas), estando mais expostas ao progresso recente da IA, são ainda as que correm menos riscos de automação, já os empregos de baixa e média qualificação estão em maior risco, nomeadamente em setores como construção, agricultura, pesca e silvicultura e, em menor escala, os das áreas de produção e transporte.
Mas, paralelamente, 63% dos trabalhadores consideram que a IA trouxe um impacto positivo na qualidade dos seus empregos (dados OCDE), expandindo a capacidade humana através do acesso rápido a informação e tratamento de conteúdos, o que afeta positivamente a qualidade do emprego. E também é previsível a criação de novos empregos e em áreas emergentes, como realidade virtual/aumentada ou bioinformática. Segundo o WEF, olhando só para profissões como analistas e cientistas de dados, especialistas em machine learning e peritos em cibersegurança, deverão aumentar na ordem dos 30% até 2027.
Por isso, a IA não é necessariamente o monstro debaixo da cama da nossa infância. Algumas vozes fazem eco dos receios mais comuns, como Yuval Noah Harari, que defende que até 2050 surgirá uma nova classe de pessoas, a dos inúteis, pessoas que não serão apenas desempregadas, mas que não serão pura e simplesmente empregáveis, porque serão incapazes de acompanhar o ritmo do progresso tecnológico. Mas, como refere Arlindo Oliveira (Inteligência Artificial), a maioria das profissões que conhecemos hoje nem sequer existia antes da revolução industrial, pelo que não há motivo para pensar que a IA pura e simplesmente se limite a destruir a ocupação humana.
Jan Lucassen (História do Trabalho) afirma que já se concebeu um sem fim de soluções para a organização do trabalho desde a pré-história e é isso que teremos de continuar a fazer. É claro que as consequências das iterações entre automatização, robotização e digitalização são difíceis de antever e a diferença face ao passado parece ser a velocidade das transformações.
Mas isso deve ser um convite à antecipação dos desafios. E tal como todos os desafios do nosso tempo, o desafio do trabalho num mundo digital exige uma abordagem concertada: os Governos, as empresas, a Academia e todos os parceiros sociais devem investir na adaptação da força de trabalho em termos de educação e formação, para garantir que todos os trabalhadores adquirem as competências de que necessitam.
É nessa perspetiva que, em Portugal, convergem medidas como a Estratégia Nacional de IA, em particular o seu foco na educação, inclusão, qualificação e especialização de recursos humanos, e as Agendas Mobilizadoras do PRR, com 100 milhões de euros de investimento destinados à IA. Este é um desafio de todos, um desafio que é obrigatório vencer porque, citando de novo Jan Lucassen, o trabalho não é apenas necessário para a nossa sobrevivência: é fundamental para a nossa auto-estima e para sermos bem vistos aos olhos dos nossos pares.
A mesma ideia defendida por Michael J. Sandel (A tirania do mérito, o que aconteceu ao bem comum?) quando afirma que o nosso papel mais importante na economia não é o de consumidores, mas de produtores daquilo de que outros precisam e valorizam. Não há sociedade digna e com futuro sem esta aposta no trabalho, enquanto parte essencial e contributo individual da forma como definimos o bem comum.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico