O regresso do debate orçamental europeu
A tentativa fracassada do BCE em baixar a inflação através das taxas de juro está a deixar os mercados financeiros stressados e a apertar as condições de financiamento dos estados, tornando ainda mais sensível o regresso da vigilância e das restrições orçamentais a nível europeu.
A cláusula de escape das regras orçamentais vai ser desativada em 2024, repostos que estão os níveis de atividade económica pré-Covid e após um ano a resistir aos impactos da Guerra, designadamente nos preços da energia. Já no próximo mês, o Governo terá de apresentar um Programa de Estabilidade que, pela primeira vez em 4 anos, cumpra com as regras impostas pelos tratados orçamentais. A tentativa fracassada do BCE em baixar a inflação através das taxas de juro está a deixar os mercados financeiros stressados e a apertar as condições de financiamento dos estados, tornando ainda mais sensível o regresso da vigilância e das restrições orçamentais a nível europeu.
Na aproximação das eleições europeias, é natural que este se torne um eixo central do debate público. A esquerda radical reclamará pelo desrespeito por estas regras – impostas, irracionais, insensíveis a uma realidade social difícil. A direita, em oposição no nosso País, fará um equilíbrio entre o reclamar que as contas públicas podiam ser ainda melhores e a ressonância das reivindicações sociais por mais despesa e menos receita. O Partido Socialista deverá, e bem, manter as contas certas que soube trazer ao país como um ativo político, económico e social. Afinal, a estabilidade financeira do Estado é uma condição essencial não só da resiliência do nosso contrato social, como o período da Troika bem evidenciou, mas também da estabilidade económica das empresas e da captação de investimento privado.
A questão mais relevante, porém, não é se devemos ter contas certas mas, sim, que contas certas? Este tema tem animado o debate a nível europeu. Na passada quarta-feira, a Comissão Europeia publicou uma Comunicação sobre as orientações para a política fiscal em 2024 e a preparação para a reforma das regras orçamentais, cujos atos legislativos devem ser propostos até ao início de abril.
“A história repete-se: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”, antevia Karl Marx. No início da década de 2010, a Europa deu uma pirueta de 180 graus, passando de recomendar investimento para recomendar austeridade. Com a ajuda da subida das taxas de juro, isso conduziu-nos à tragédia que hoje conhecemos como crise das dívidas soberanas. Hoje assistimos à farsa de uma Europa que nos incentiva a investir o PRR, que gostava de distorcer o mercado único para ripostar contra a política industrial americana, mas que pede aos Estados-Membros que façam consolidação orçamental e limitem os apoios às famílias e empresas tanto no tempo como no âmbito, restringindo-os àqueles que mais precisem.
Em Bruxelas, na Semana Parlamentar Europeia, tive oportunidade de contestar esta ortodoxia orçamental. Não podemos prescindir de apoiar as classes médias nem as empresas que, por não precisarem tanto, vão ficar prejudicados na sua competitividade. Não podemos, sobretudo, ignorar os sinais de desaceleração da atividade económica, visíveis em diversas economias europeias no desemprego, na contratação de novos créditos e nas encomendas industriais. Como já escrevi nesta rubrica, precisamos de uma política fiscal expansionista não da procura mas da oferta. Se a Covid nos demonstrou que são possíveis políticas industriais que reorganizem as cadeias de valor, a urgência das transições climática e digital impõem-no.
Para serem compatíveis com a disciplina orçamental europeia, as trajetórias de despesa devem ser consistentes com uma probabilidade de 70% de redução da dívida na década seguinte ao plano – um plano definido em 2015 teria tido que antecipar uma redução de dívida entre 2020 e 2029. Ao assentar no muito longo prazo, este exercício enferma, desde logo, de um problema de pressupostos – quem previu as recessões Covid ou as taxas de juro atuais? Como nos recordam os think-tanks alemão Dezernat Zukunft e holandês Instituut voor Publieke Economie, mesmo antes da Covid, as análises de sustentabilidade da dívida da Comissão eram altamente voláteis, sujeitos ao inobservável “PIB potencial”. Isto sem olhar para Portugal onde as previsões macroeconómicas têm sido notável e consistentemente conservadoras.
O maior problema destas regras é, porém, a cristalização de um viés desmentido pela realidade económica. Afinal, ao exigir que estes cenário indiquem redução de dívida com 70% probabilidade e em todos os cenários adversos, a Comissão exigirá uma despesa menor do que aquela que seria estritamente necessária para reduzir a dívida. A mensagem é clara – o único risco que importa é despesa a mais. Ignorar o risco de despesa a menos é, porém, ignorar o risco de PIB a menos. Como bem demonstrou Portugal e não só, o crescimento do PIB tem sido o principal contributo para a redução do peso da dívida e, diga-se, também dos défices.
É, por isso, uma péssima notícia que nos seja pedido para trocar a regra de défices por uma regra de despesa. O indicador proposto é a “despesa primária líquida” – excluindo da despesa total os juros, as despesas financiadas pela UE, as medidas discricionárias da receita e a despesa cíclica com o desemprego. Se as primeiras duas não levantam controvérsia, as últimas duas são de difícil estimação. Elas ignoram também que a base fiscal pode crescer mais rapidamente que o PIB potencial, resultando em ganhos não-discricionários na receita que deveriam poder ser recanalizados para benefício das pessoas e não só dos credores. Mesmo que tudo isso se superasse, ao tentar controlar um indicador complexo e pouco transparente da despesa, estaremos a reduzir tanto o escrutínio público como o campo de alternativas do debate orçamental.
O combate à despesa pública não é uma opção meramente técnica. É uma opção política que não surpreende quem conhece os pergaminhos liberais da tecnocracia bruxelense. É, todavia, um erro que limitará a competitividade, coesão social e capacidade de transição dos estados com espaços orçamentais menores, como é o caso de Portugal, e que, por isso, não consigam manter níveis adequados de investimento público. Esta é uma ameaça que vai ao coração do projeto europeu. Quando à Alemanha e França (representando apenas 38% da produção industrial europeia) são permitidas fazer 77% dos auxílios de Estado autorizados em toda a Europa, o mercado comum deixa de ser único e passa a ser centrípeto, com as economias mais periféricas empurradas para a divergência.
A solução não será as chamadas “regras douradas”, que excluem das regras orçamentais certos investimentos. Pouco importa ser cego ao investimento verde se as condições de o fazer continuarem tão desiguais. É fundamental, por isso, dotar a Europa de uma capacidade orçamental permanente – um PRR 2.0 – também associado a investimentos e reformas e incluindo as despesas correntes necessárias à sua execução, para fazer face aos desafios que enfrentamos no futuro mas também no presente – clima, digital, migrações, envelhecimento, defesa, entre outros. Não investir pode parecer barato mas, como dizem as próprias estimativas da Comissão, nesta encruzilhada de crises, para a dívida pública, “o barato sai caro”.
Este é, em síntese, um debate em que não poderemos deixar de participar. Os riscos de um impasse são quase tão grandes como os riscos de uma má solução. Há 12 anos, pagámos cara uma dupla fatura de indecisão seguida de má decisão. Agora temos uma oportunidade única de desforra e de construir uma Europa que sirva as pessoas e vença o futuro. Que não nos doam os dedos nem a voz.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico