O restauro da natureza e as ligações perigosas do PSD
Confiemos, apesar do seu notório empobrecimento ideológico e do idioma populista que adotou, que o PSD saberá reconhecer a tempo o perigo de fazer corpo com a extrema-direita no Parlamento Europeu.
A 12 de Julho, o Parlamento Europeu aprovou uma proposta de Lei do Restauro da Natureza, com os votos contrários de uma aliança do centro-direita com os conservadores e a extrema-direita. A lei – uma proposta de regulamento – pretende responder à urgência de recuperar os ecossistemas europeus, os quais se encontram, na sua grande maioria, em mau estado. É que a transição ecológica não pode ficar circunscrita à descarbonização e ao desmame dos combustíveis fósseis. Em paralelo, há que reparar os danos causados na biodiversidade e nos ecossistemas antes que eles devenham irreparáveis. E quando falamos de restaurar ecossistemas, falamos necessariamente de restaurar ecossistemas agrícolas – os quais representam perto de 40% da superfície total da UE.
Na verdade, a própria produtividade agrícola, no longo prazo, não é viável sem biodiversidade, sem solos fecundos, sem polinizadores, sem sebes vivas, sem galerias ripícolas e rios desobstruídos, etc. Uma das motivações deste regulamento é, pois, garantir a segurança alimentar da Europa, ajudando o setor agrícola a adaptar-se às alterações climáticas. Mas esta legislação europeia não se fica por aqui. Ela visa ainda, entre outros, expandir a área arborizada das cidades, regenerar habitats marinhos e diminuir a utilização de pesticidas químicos. O regulamento vincula os Estados-membros a objetivos quantificados e calendarizados, mas deixa-lhes a liberdade de os atingirem da forma que entenderem mais adequada às suas características, através de Planos de Restauro Nacionais.
A lei foi aprovada apesar da campanha de desinformação e de intoxicação da opinião pública que mobilizou todo o grupo do Partido Popular Europeu (PPE), incluindo, de maneira muito empenhada, os eurodeputados do PSD que o integram. Também estes transportaram factoides e alegações falsas para os jornais e para as redes sociais. O PPE justificou a sua reviravolta com argumentos falaciosos, explorou medos infundados, confundiu deliberadamente medidas voluntárias com medidas vinculativas, confundiu o restauro de ecossistemas com a criação de novas áreas protegidas, procurou amedrontar os cidadãos e os agricultores. Os eurodeputados do PSD não se coibiram de agitar o fantasma dos fogos florestais… Tudo isto depois de o próprio PPE ter enfraquecido a proposta de regulamento com as emendas que conseguiu fazer aprovar previamente.
O verão de 2023 fica também marcado pelas eleições legislativas em Espanha, que por pouco não franqueavam a porta da governação a um franquismo recauchutado e conduziram o país vizinho a um “jardim onde os caminhos se bifurcam”. Que tem isso a ver com o a Lei do Restauro da Natureza? É que, na sua rejeição desta proposta, o PPE enfileirou com partidos como o Vox e os Irmãos de Itália (integrantes do grupo ECR – Conservadores e Reformistas), para não falar da Frente Nacional ou da Alternativa para a Alemanha (membros do Identidade e Democracia). Aparentemente, o propósito é testar uma maioria no Parlamento Europeu que descarte os Socialistas & Democratas, e, de caminho, os Liberais (ou pelo menos parte deles). O PPE tem vindo a endurecer as suas posições no Parlamento Europeu de modo a encostar-se à direita e a romper com os consensos ao centro, que têm décadas. Sem estes consensos, recorde-se, não teriam acontecido a vacinação conjunta durante a pandemia e a emissão de dívida europeia para financiar os planos de recuperação; ou o Pilar Europeu dos Direitos Sociais; ou o próprio Pacto Ecológico Europeu, que agora fica politicamente fragilizado.
Santiago Abascal, que tem acordos de governação local com o Partido Popular espanhol, diz que as alterações climáticas são “a maior intrujice do século”. A 18 de Julho, Rita Matias, deputada do Chega, tentou intrujar a Assembleia da República com um “relatório do IPCC”, de 1989, o qual, depois de distribuído, a seu pedido, pelos deputados da Comissão de Ambiente, se veio a revelar um recorte de um jornal do Estado do Wisconsin (The Oshkosh Northwestern), com declarações de um indivíduo que não era sequer cientista. Como diria Manuel António Pina, estão todos a ver onde é que o autor quer chegar?
Com os olhos postos na sua história, confiemos, apesar do notório empobrecimento ideológico e do idioma populista que adotou, que o PSD saberá reconhecer a tempo o perigo de fazer corpo com a extrema-direita no Parlamento Europeu. É que, se a atual liderança do PPE levar por diante a sua celerada estratégia de alianças, isso representará um golpe sem precedentes na ideologia do consenso até aqui perfilhada pelas famílias políticas moderadas, com consequências inimagináveis para o projeto europeu.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico