O tempo da política está fora dos eixos
Não se trata aqui de desvalorizar os erros cometidos, que são de monta, trata-se de não os sobrevalorizar para além de tudo o que é razoável
A fuga imparável do tempo, com o advento de um novo ano no calendário, vem recordar-nos como “marcar a agenda” é um exercício tão efémero quanto escrever um nome na água. Na ilusão de que governamos o nosso tempo, somos, na verdade, governados por ele.
No rescaldo da crise internacional de 2008, Daniel Innerarity retratou a nossa época como aquela onde impera “um trabalho mediático que nos cristaliza no presente”. No seu ensaio O futuro e os seus inimigos, o filósofo basco lamentava “o confisco do futuro na doença do presente”. A verdade é que, nalgumas dimensões, as democracias acabaram por voltar o rosto para o futuro, dando a si mesmas, por exemplo, datas para a neutralidade carbónica e meios para as alcançar. Todavia, continuamos a opinar e a agir enquistados na fina película de um presente cronofágico, viciado na hipérbole. A tirania do imediato não é uma novidade da nossa era. Há 2500 anos, Parménides de Eleia já deplorava, em versos hexâmetros, que “o imediato dirigisse errante pensamento” nos mortais, deixando-os “perplexos e indecisos”, como que “surdos e cegos”.
Nas últimas semanas, a insurreição mediática causada pela inconstância orgânica do Governo ilustra até que ponto o imediatismo, o presentismo, a efervescência do momento, se tornaram hegemónicos na relação da política com o tempo, entronizando o episódico e o contingente. Não se trata aqui de desvalorizar os erros cometidos, que são de monta, trata-se de não os sobrevalorizar para além de tudo o que é razoável. É que, por estes dias, não se apontam erros de governação propriamente ditos, mas erros de avaliação de perfis de governantes e juízos defeituosos ou incompletos sobre as suas condutas individuais. Erros de casting, como agora sói dizer-se. Nada que tenha impedido uma turba vociferante de proclamar a ingovernabilidade e até, para cúmulo, de exortar à dissolução da Assembleia da República, num verdadeiro ataque à democracia que se diz querer defender.
Volvidos quase cinquenta anos, a democracia portuguesa merecia ser tratada no espaço público com outro grau de maturidade. Mas vemos até o contrário: a deterioração crescente do ambiente político, irrigado pelos humores e temores de cada hora, pelo calafrio de cada post ou tweet, pela vociferação inconsequente, a exigência irrazoável, o anátema descabelado.
É verdade que a generalidade dos políticos se aclimatou a esta temporalidade sem espessura e vai fabricando levianamente as armadilhas em que ela própria se enreda. Quando, no seu anelo de visibilidade, o poder político aceita submeter-se às regras do trabalho mediático, este último, “em vez de se limitar a impedir os abusos do poder, chega ao ponto de incapacitar a sua ação”, como escreve Marcel Gauchet – autor da premonitória obra A democracia contra si mesma – num artigo de 2006. A afamada bolha mediática não é, como as de sabão que toda a criança gosta de soprar, transparente. É uma bolha vedante, embaciada, que circunscreve o campo de visão e remove o horizonte, deixando apenas o chão. O tempo da decisão política é permanentemente abocanhado – e deixa-se abocanhar – por tal bolha, destruindo qualquer perspetiva de sincronia social.
Não sei se algum dia veremos a política reencontrar-se com o tempo, que, como no Hamlet, “está fora dos eixos”. Mas sei que o tempo da governação não pode ser o tempo do trabalho mediático, nem pode ser o da oposição partidária empoleirada nesse trabalho hoje dessincronizado com o tempo das pessoas.
Evidentemente, o trabalho mediático é insubstituível enquanto “contrapoder”. Sem isso, não há verdadeira democracia. Sabemo-lo pelo menos desde Tocqueville e do seu seminal A Democracia na América. Mas uma coisa é escrutinar e vigiar, outra é instigar a desconfiança na classe política e trucidar reputações desapiedadamente. A ditadura da suspeição e o marketing do anátema não são compatíveis com a democracia representativa, muito menos com o professado desejo de a proteger.
Aceitaremos que o arrepio das paixões e a retórica da atualidade tomem o lugar da equidistância analítica, da prudência e da temperança que fazem a maturidade de uma democracia? Se condescendermos, estabilidade ou governabilidade tornar-se-ão uma miragem, com ou sem maiorias absolutas, e a rebarbativa exigência de “reformas” e de “estratégias de longo prazo” meros sofismas para adoçar a virulência dos comentadores, que, do alto da sua inimputabilidade opinativa, concorrem para a excomunhão da função política.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico