Ordens profissionais e acesso às profissões: rumo ao equilíbrio
Ao contrário do que se tem alegado, não há como ver no projecto do PS formas de governamentalização ou de limitação da autonomia constitucionalmente protegida destas associações públicas profissionais.
Um dos procedimentos legislativos mais relevantes que foram interrompidos pela dissolução da Assembleia da República respeita à garantia de acesso às profissões reguladas, associada ao necessário aprofundamento do regime das ordens profissionais.
Ao contrário do que se tem alegado, não há como ver no projecto do PS formas de governamentalização ou de limitação da autonomia constitucionalmente protegida destas associações públicas profissionais.
O impulso determinante para o debate tem sido o de aproximar a realidade nacional do percurso europeu de diminuição de entraves injustificados no acesso a atividades profissionais. Para além de inúmeras recomendações da UE e da OCDE, e da existência de um corpo normativo substancial (e vinculativo) traduzido em várias diretivas sobre a matéria, é também a partir de uma concretização da liberdade de escolha de profissão, direito fundamental assegurado pela Constituição da República, que se deve encarar o tema.
Neste contexto, uma das principais preocupações do projeto de lei apresentado pelo PS é a que orbita em torno da necessidade de rever os modelos de estágios profissionais excessivamente limitativos que ainda persistem. Seja porque replicam a lecionação e/ou avaliação de conteúdos já ministrados na formação superior, seja porque a sua duração ultrapassa manifestamente o que a razoabilidade aconselharia, seja ainda porque os custos da respetiva frequência (e, por vezes, das taxas de inscrição inicial ou de conclusão) consubstanciam uma indesejada limitação por motivos económicos ao desempenho da profissão, os estágios com estas características representam um sério desafio para quem pretende iniciar a sua vida profissional.
Para além dos problemas estruturais referidos, subsistem ainda casos de ausência de remuneração dos estágios profissionais, fazendo acrescer um fator adicional de injustiça e desequilíbrio a esta realidade. Apesar de ser evidente que existe uma heterogeneidade de perfis de estágios e de patronos, mesmo dentro de uma realidade profissional (sendo o caso dos advogados paradigmático desta complexidade), a inserção do princípio da remuneração não deve ficar fora de uma lei enquadradora da matéria.
Adicionalmente, uma nota deve ainda ser deixada quanto às propostas sobre a arquitetura institucional das ordens. Ao contrário do que se tem alegado, não há como ver formas de governamentalização ou de limitação da autonomia constitucionalmente protegida destas associações públicas profissionais. Apenas está em causa a criação de mecanismos de proteção dos destinatários dos seus serviços, bem como a implementação de garantias de diversidade e abertura à sociedade na composição dos seus órgãos.
A crítica é injusta, em primeiro lugar, porque a autonomia não pode ser lida como sinónimo de total impermeabilidade ao escrutínio, nem habilitar o aparecimento de espaços percecionados como corporativos. Insistir numa visão fechada só prejudicará a imagem e dificultará a atuação das ordens profissionais, minando a autoridade de que carecem para reforço da sua legitimidade.
Em segundo lugar, é ainda menos compreensível a acusação de governamentalização, porquanto continua a caber aos profissionais inscritos em cada ordem exercer todas as competências eletivas determinantes. Senão vejamos. Quanto ao provedor, personalidade independente com a função de defender os interesses dos destinatários dos serviços prestados, prevê-se que seja designado pelo bastonário ou presidente, sob proposta do órgão de supervisão.
Por seu turno, o órgão de supervisão integrará o provedor, sete personalidades eleitas pela assembleia representativa dos membros da ordem (quatro inscritas na ordem e três oriundas dos estabelecimentos de ensino superior que ministram os cursos que dão acesso à profissão), e uma personalidade a cooptar pelos eleitos.
Finalmente, em relação ao órgão disciplinar, apenas se exige que integre também algumas personalidades de reconhecido mérito, que não sejam membros da ordem, ficando garantida, uma vez mais, a sua eleição pela assembleia representativa.
O submetido à discussão na generalidade não é um ponto de chegada: traduz vários anos de debate, avaliação de propostas e de abertura a colaboração de todas as ordens profissionais e de associações de estudantes e de jovens profissionais, bem como de todos os interessados em aprofundar a qualidade dos serviços prestados pelas profissões reguladas. Esperemos que o caminho que se segue permita aprofundar o consenso e assegurar o equilíbrio.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Pedro Delgado Alves, Jornal Público, 28 de junho de 2022