Para que não fique ninguém para trás
A Organização Mundial da Saúde (OMS) descreve a Mutilação Genital Feminina (MGF) como “o que envolve a remoção (parcial ou total) ou lesão dos órgãos genitais femininos externos ou quaisquer danos infligidos aos órgãos genitais femininos por motivos não médicos” e as consequências do corte físico deixam no seu rasto uma longa lista de violações de direitos das mulheres: à sua saúde, à sua segurança e integridade física, ao seu direito de ser livre de tortura e tratamento cruel, desumano ou degradante, o seu direito à vida que se põe em risco no momento da mutilação, no momento do parto ou pós parto e a violação do seu direito a viver com autonomia e liberdade corporal e social.
Hoje, dia 6 de fevereiro, esta será a realidade de milhares de raparigas que sofrerão com esse ato violento e desumano que é a mutilação genital feminina.
Estima-se que sejam mais de 200 milhões de meninas e mulheres, ainda vivas, que foram submetidas a esta prática que está concentrada essencialmente em países de África, do Médio Oriente, da América Latina e da Ásia mas que também acontece em comunidades na Europa, na Austrália ou na América do Norte.
Se nada for feito até 2030, acrescentamos mais 15 milhões de raparigas a serem vítimas de MGF, violação ostensiva de direitos humanos. Só este ano, são mais de 4,3 milhões as meninas que estão em risco de sofrer esta forma de violência.
Uma violência reconhecida pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 2012 que passou a fazer do dia 6 de fevereiro o Dia Internacional da Tolerância Zero à Mutilação Genital Feminina.
Desde então o combate a esta prática intensificou-se e os contributos da UNICEF, da OMS, do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP) têm sido essenciais para entender as atitudes e crenças associadas ao fenómeno, para encontrar estratégias para a mudança, para apresentar propostas de políticas públicas de saúde e respostas pragmáticas a nível global.
Mas a prática não está eliminada e a pandemia trouxe recuos assinaláveis no combate, com a suspensão de financiamentos para o trabalho direto nos países afetados. Precisamos recuperar o tempo perdido num esforço que necessita ser 10 vezes mais rápidos para que se possa cumprir a meta da eliminação da MGF na Agenda Global de Desenvolvimento- 2030.
Portugal tem contribuído com um caminho sustentado de políticas públicas de combate a todas as formas de MGF, com impacto nas áreas da igualdade, da saúde, da justiça (lembramos que a prática foi criminalizada em 2007 e o crime autonomizado em 2015) e cooperação e também na prevenção primária no contexto da educação e proteção social de crianças e jovens. O reforço na formação de profissionais de saúde e o apoio às organizações não governamentais permitiu mapear e conhecer o fenómeno em Portugal e desenhar campanhas de informação e sensibilização junto de diferentes públicos. A cooperação com países que têm prevalência elevada de MGF como a Guiné-Bissau, com o projeto” Meninas e Mulheres: Educação, Saúde, Igualdade, Direitos”, além da presença nas Nações Unidas com o FNUAP, são passos que necessitam de continuar a ser reforçados sem estigmatização de comunidades. Por isso, Portugal continua a colocar o combate às Práticas Tradicionais Nefastas no centro das políticas nacionais de combate à violência contra as mulheres, um compromisso inscrito na Estratégia nacional para a Igualdade e não discriminação 2018-2030- Portugal + Igual e na Estratégia para a Cooperação Portuguesa 2030.
Mas nunca é demais lembrar que esta é uma responsabilidade coletiva. Num mundo em que a desigualdade de género está profundamente enraizada, a MGF é mais um dos múltiplos e violentos mecanismos de poder exercidos sobre os direitos da mulher e a sua autonomia. Por isso este ano, o programa conjunto FNUAP/ UNICEF lembra que os homens e os rapazes são aliados necessários nesse esforço transformador de desafiar as “dinâmicas das famílias e comunidades e apoiar as mulheres, raparigas e meninas como agentes de mudança”.
Por isso, neste 6 de fevereiro, Dia Internacional de Tolerância Zero à MGF, com as Nações Unidas, sob a liderança do FNUAP e da UNICEF, apelamos ao fim desta prática que viola os direitos humanos e celebramos as mais de 45 milhões de pessoas que fizeram declarações públicas de abandono desta prática tradicional nefasta, celebrando as comunidades e famílias que apoiam a alteração de normas sociais que violam, limitam e matam meninas e mulheres e juntamo-nos ao secretário-geral da ONU, António Guterres, pedindo que os homens e rapazes em todo o mundo, denunciem e avancem com iniciativas para pôr fim à mutilação genital feminina em benefício de todos e de todas. Para que não fique ninguém para trás.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Carla Sousa, Marta Freitas e Sara Velez, Jornal Diário de Notícias, 06 de fevereiro de 2023