Refugiados: o legado de proteção internacional que não se hipoteca
Portugal construiu ao longo dos anos um património humanista assente na dignidade da pessoa humana e proteção efetiva daqueles que nos buscam. Um património assente num grande consenso entre todos os partidos políticos, que não devemos alienar ou hipotecar por meros taticismos partidários, escreve a jurista e vice-presidente do grupo parlamentar do PS, Susana Amador.
1. Portugal esteve entre os primeiros países do mundo a ratificar a Convenção de Genebra em 1961, comprometendo-se a acolher em território nacional indivíduos refugiados e requerentes de proteção internacional.
2. Para esse efeito, Portugal desenhou e redefiniu desde então, com larga margem de apoio parlamentar, a sua lei do asilo, vigorando atualmente a Lei nº 27/2008, de 30 de junho, com alterações da Lei nº 26/2014, de 5 de maio.
3. Nos últimos sete anos Portugal esteve também entre os países europeus que acedeu mais positivamente a compromissos de recolocação de requerentes de proteção de outros Estados-membros (especialmente da Grécia e da Itália) e de reinstalação de refugiados, respondendo a sinalizações do ACNUR (especialmente a partir da Turquia e do Egipto), participando em vários mecanismos europeus de apoio à proteção internacional que induziram ao incremento desta realidade no país.
4. O Estado Português tem sido, de forma consecutiva, reconhecido internacionalmente como um país com boas práticas de acolhimento de refugiados e migrantes. Não somos nós que o afirmamos, mas sim entidades externas com total idoneidade e imparcialidade, como a Comissão Europeia, o ACNUR , a Rede das Nações Unidas para as Migrações, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a UN-Habitat que em fevereiro de 2022 apontaram Portugal como um exemplo de boas práticas no acolhimento de migrantes.
5. Portugal trabalha desde 2019 na concretização do Plano Nacional de Implementação do Pacto Global para as Migrações, documento que envolve 16 ministérios e 28 serviços públicos e que permitiu, em mais de dois anos de implementação, fortalecer as políticas nacionais de integração e os elos de ligação das pessoas migrantes aos seus países.
6. Esse trabalho foi ,aliás, reconhecido no recente Fórum Internacional de Análise das Migrações, organizado pelas Nações Unidas ocorrido em Nova Iorque e o trabalho que se impõe é no sentido de melhorar todos os indicadores ao nível da empregabilidade , alojamento e aprendizagem da língua portuguesa dos migrantes e refugiados, como enfatizou a Ministra Ana Catarina Mendes. Acresce que o trabalho em rede do ACM com as autarquias e ONGs especializadas como o Conselho Português para os Refugiados no âmbito do apoio jurídico e elegibilidade dos requerentes de asilo deve ser diariamente robustecido . Com efeito, a política ativa , solidária e descentralizada é o caminho que devemos consolidar.
8. O relatório sobre o Asilo em Portugal destaca o trabalho realizado em 2019 e 2020 no âmbito do Programa de Reinstalação, salientando-se que Portugal é um dos países que mais refugiados acolhe ao abrigo deste programa.
9. Na última década registou-se um crescimento exponencial do número de pedidos de asilo em Portugal, pelo que foi necessário encontrar formas de resposta expeditas e inovadoras, preferencialmente descentralizadas no nosso território. Com esse objetivo de encontrar respostas ainda mais eficazes e eficientes no acolhimento e integração, a Resolução do Conselho de Ministros nº 103/2020 definiu a criação de um sistema único de acolhimento e integração de requerentes e beneficiários de proteção internacional, incluindo crianças não acompanhadas, coordenado pelo Alto Comissariado para as Migrações.
10. Aos requerentes e beneficiários de proteção internacional acolhidos por Portugal é assegurado um feixe de apoios que ocorrem desde o processo de decisão até ao processo de integração. O acolhimento faz parte intrínseca de uma política nacional que encara as migrações como uma dinâmica positiva para o nosso país, contribuindo para o equilíbrio demográfico, e para o desenvolvimento económico que valoriza a diversidade enquanto fonte de competitividade e inovação.
11. No que diz respeito aos Refugiados Ucranianos , Portugal foi mesmo o primeiro país a implementar o mecanismo da proteção temporária e o volume de pedidos recebidos até ao momento traduz um movimento humano sem precedentes . Mais de 39 mil cidadãos ucranianos beneficiam agora dessa proteção, três mil já têm contratos de trabalho. Nesta enorme moldura humana temos 12 500 crianças, sendo que, 4.600 já estão integradas no nosso sistema educativo. A política de acolhimento de Portugal continua a merecer o reconhecimento internacional e do próprio Presidente Ucraniano.
12. O caso de Setúbal, que está aliás a ser investigado nas sedes próprias e que tem sido escrutinado nos órgãos municipais competentes, não representa de todo a política de defesa dos direitos humanos que molda e enforma Portugal .
13. Querer utilizar de forma oportunista esta situação que foi considerada episódica por todas as entidades ouvidas na Assembleia da República em sede da I Comissão, diz muito sobre o estado em que se encontram alguns partidos políticos como o PSD que na busca de se reerguerem, não percebem que estão a ser engolidos pela extrema direita e que correm o risco de se tornarem irrelevantes. Uma irrelevância que vejo como preocupante, porque o PSD tem sido essencial na construção do sistema democrático.
14. Mas mais grave do que isso é a extrema direita utilizar o expediente de uma Comissão de Inquérito para fazer um número mediático sem abordar a substância do drama humano que a guerra na Ucrânia está a gerar e além disso aproveitar o balanço para distinguir entre os “ bons “ migrantes e os “ maus” migrantes , como ocorreu no debate parlamentar de 1 de junho.
15. Não é admissível que se faça tábua rasa da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que se oblitere a nossa Constituição e sobretudo que não se honre a Casa da Democracia.
Como referiu o primeiro-ministro “Para Portugal, o que justifica a proteção internacional é a dignidade humana. A dignidade humana é indiferente em relação à origem, seja ucraniano, seja sírio ou líbio”. Há legados que não se hipotecam ..ou colocam em causa por alguns minutos mediáticos.
Portugal construiu ao longo dos anos um património humanista assente na dignidade da pessoa humana e proteção efetiva daqueles que nos buscam. Um património assente num grande consenso entre todos os partidos políticos.
Não o devemos alienar ou hipotecar por meros taticismos partidários , ou porque temos uma nova arquitetura partidária no Parlamento. Em primeiro lugar porque esse é um caminho demasiado perigoso e em segundo lugar porque “ andámos muito para aqui chegar “.
Há legados que ,ao invés, se devem aperfeiçoar e fortalecer …. A defesa indeclinável de quem solicita proteção internacional sem olhar a geografias, credos , raça ou etnia, será sempre a nossa escolha , sem tibiezas e sem coniventes cumplicidades!”
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico