Tributar lucros excedentários numa crise assimétrica
Discute-se por estes dias na AR a proposta do governo de tributar os lucros extraordinários nos setores da energia e da distribuição alimentar.
Esta medida constitui um avanço justo num momento em que a pressão inflacionista – que se prolonga mais do que o previsto, com consequentes dificuldades para as famílias e para a generalidade da economia – coexiste com desempenhos assimétricos e excecionais de alguns setores. É, além disso, uma medida desenhada com equilíbrio face ao regulamento europeu aprovado em outubro e com adequação à realidade nacional.
Sendo uma tributação extraordinária, é essencial sublinhar a razoabilidade e a ponderação da proposta e do modo como está construída. Desde logo, no tempo e no enquadramento.
Ao contrário de alguns países que foram avançando isoladamente com propostas de âmbito e configuração desconexas, indutoras quer de resultados díspares quer de incerteza para as respetivas economias, o governo português situou a sua atuação numa lógica de coordenação europeia. Foi assim que, após proposta da Comissão Europeia de setembro, e acordo no Conselho Europeu em outubro, o governo aprovou legislação sobre a matéria em novembro. É esta proposta que está agora em fase final de debate e votação.
O regulamento europeu de outubro prevê expressamente a sua aplicação aos lucros extraordinários de 2022, suportando assim uma aplicação retrospetiva à totalidade do atual ano fiscal, centra-se nos setores do petróleo bruto, gás natural, carvão e refinação e estabelece como patamar comum a tributação de pelo menos 33% do lucro considerado excedentário.
Perante este quadro, a proposta em discussão é equilibrada nas opções que toma.
Ao optar por um nível fixo de tributação alinhado com o patamar básico do regulamento europeu, torna-se simples e previsível para as empresas – ao contrário de outros países que optaram por níveis mais elevados e nalguns casos variáveis. E ao alargar para quatro anos o período de referência para cálculo dos lucros pelo menos 20% superiores garante-se solidez na realidade face à qual se está a analisar o que constitui, ou não, lucro excedentário.
Por outro lado, estende-se à distribuição alimentar esta contribuição, excluindo as micro e pequenas empresas deste esforço. Outros países alargaram a vários setores os seus instrumentos de tributação de lucros inesperados, mas tendo Portugal optado por se colocar no essencial dentro do regulamento europeu, incluir ainda assim a distribuição faz sentido numa ótica de coerência, de equidade e de adequação aos fins.
Sendo um setor não abrangido por outro instrumento de taxação extraordinário ou de solidariedade, é um setor com reporte de lucros significativos pelos seus principais agentes num mercado com níveis elevados de concentração e num momento de dificuldades das famílias. Ora, não apenas a alimentação tem um forte peso nos orçamentos das famílias de menores rendimentos como é, atrás da energia, o setor em que o Índice de Preços no Consumidor teve maior crescimento nos últimos 12 meses (quase 19%).
Tendo a arrecadação de receitas destas contribuições temporárias afetação prevista que inclui apoio financeiro aos mais vulneráveis nos encargos quer com bens alimentares quer enquanto clientes finais de energia, justifica-se plenamente a tributação de lucros excedentários no atual contexto.
É, na verdade, tanto um imperativo ético de moralização das dinâmicas de mercado e de socialização dos desequilíbrios por este gerados, como um reforço de meios que pode ser relevante para as políticas públicas de mitigação dos efeitos da atual crise, em particular junto dos mais vulneráveis.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
Fonte: Miguel Cabrita, Jornal Diário de Notícias, 20 de dezembro de 2022