Uma fenomenologia da degradação institucional
Veja-se, por exemplo, o regresso do Professor Cavaco Silva. O país recorda-o como um inflexível apóstolo da racionalidade económica. Durante décadas, aturámos as suas prédicas sobre a má moeda versus a boa moeda, o rigor orçamental, o controlo da dívida, o saldo disto e daquilo. Depois houve o BPN, a casa da Aldeia da Coelha, as “forças de bloqueio”, o caso das “escutas”, o seu séquito excelentíssimo, etc., etc., até à degradação final, ao som das trombetas da Ponte 25 de Abril.
A propósito do Brexit, Peter Sloterdijk falava, num texto de 2020, da “penetração do experimental, do não-sólido, ou mesmo do neurótico no espaço político”. Podemos achar que as atuais circunstâncias nacionais nada têm a ver com esse episódio psicótico da história recente do Reino Unido. Mas estaríamos equivocados. Vejamos. O experimental, achamo-lo, entre outros, no incitamento à dissolução da Assembleia da República, onde existe uma maioria parlamentar estabilíssima, para franquear as portas não se sabe bem a quê. O não-sólido, que remete para a “modernidade líquida” de Bauman, encontramo-lo na impossibilidade de, hoje, alguma coisa – alguma ideia, algum debate, alguma mensagem, algum facto, alguma imagem – solidificar antes de se escoar no sifão mediático, onde tudo se perde e nada se transforma. O neurótico, esse, intrometeu-se até nas mentes mais serenas, como a de António Barreto, que falava da República, em artigo recente do “Público”, como se vivêssemos nos quadradinhos da conhecida banda-desenhada de Frank Miller, Sin City.
Uma espécie de neurose tomou conta da nossa vida pública. Não há comentador ou político que não vislumbre sinais de degradação das instituições em cada pronúncia ministerial, em cada audição parlamentar, em cada esquina – se um governante hoje espirrar em frente às câmaras, isso não pode ser senão um sinal de degradação das instituições.
O que pode significar este transtorno obsessivo-compulsivo do mundo político com a ideia de “degradação” num país onde, com as dificuldades que ninguém ignora e são partilhadas com a maioria dos seus congéneres europeus, há uma Constituição que é respeitada, existe separação de poderes, vigora um Estado de Direito, os órgãos de soberania dialogam uns com os outros, a Assembleia da República escrutina vigorosamente o Governo – apesar da tão vilipendiada maioria absoluta –, o Primeiro-Ministro interage cordialmente com o Presidente da República, o qual, por sua vez, não só usa de loquacidade irrestrita, como promulga e veta, sem dramas; um país onde há não só liberdade de expressão como parece até haver liberdade de difamação; onde o direito à greve se exerce livremente e as pessoas não só se manifestam como um ajuntamento de dez já tem, para as televisões, a dignidade de uma manifestação.
Aqueles que enjoaram o circo da Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP, já se deram conta de que uma comissão parlamentar que subsiste naqueles termos, que se permite aqueles modos, aquele vocabulário carroceiro, os interrogatórios maníacos, a sonegação de dignidade aos inquiridos, se tornou, ela sim, um agente ativo de degradação institucional, a começar pela própria instituição parlamentar. Quando se acusa primeiro e se pergunta depois, está-se a inverter a lógica sequencial que dita que um inquérito principia por hipóteses e termina com conclusões. Como se não bastasse, há deputados que tomam a Sala das Sessões por uma extensão da famigerada comissão de inquérito, e, “politiquetes e politicões”, aí aparecem “cacarejando infernalmente, de crista alta”, para citar a carta-prefácio aos Azulejos do Conde de Arnoso, de Eça de Queiroz.
Entretanto, todos os canais televisivos de notícias reproduzem o mesmo e o mesmo serve para alimentar o ressentimento fácil. Só estão disponíveis para encontrar defeitos nos governantes. A tirania do direto cancela o distanciamento imprescindível à faculdade crítica e ao exercício da memória. Veja-se, por exemplo, o regresso do Professor Cavaco Silva. O país recorda-o como um inflexível apóstolo da racionalidade económica. Durante décadas, aturámos as suas prédicas sobre a má moeda versus a boa moeda, o rigor orçamental, o controlo da dívida, o saldo disto e daquilo. Depois houve o BPN, a casa da Aldeia da Coelha, as “forças de bloqueio”, o caso das “escutas”, o seu séquito excelentíssimo, etc., etc., até à degradação final, ao som das trombetas da Ponte 25 de Abril. Não me tomem por naïf, portanto, se o que eu esperava, da sua última e badalada pronúncia, era um elogio ao atual ciclo económico e orçamental – que tem tudo aquilo de que o ex-Presidente gostava, e mais ainda.
Ou terei os sentidos toldados pelas emanações do Pântano? O espírito nublado pela propaganda do INE, do FMI, da UE, que publicitam, a favor do PS, números enganosos sobre o crescimento económico, o emprego, as exportações, o investimento estrangeiro, o equilíbrio do défice e a redução do endividamento? Será que não há mesmo remédio ou redenção para este nosso Portugal, e que, à minha volta, as instituições se desmoronam, sem que eu veja? Será que o ex-adjunto é, afinal, o Ciclista do Apocalipse e o computador a respetiva trombeta? Será que Luís Montenegro é essa “luz em um país perdido”, que viu Camilo Pessanha, mas eu, de olhar enevoado pelos vapores do lodaçal, sou incapaz de o reconhecer como o grande regenerador da República?
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico