

Sobreposição de competências da PJ e do SEF prejudica a investigação de tráfico de pessoas
A deputada do Partido Socialista Cláudia Santos frisou hoje, no Parlamento, que só se conseguirá combater o tráfico de seres humanos se as vítimas compreenderem “que são vítimas de crimes graves e não apenas vítimas do infortúnio” e também quando perceberem que “não serão elas próprias castigadas e que não precisam de ter medo da polícia, porque há uma estrutura para as acolher ou proteger que é diferente daquela estrutura policial que investigará os criminosos”.
A socialista começou a sua intervenção no debate, requerido pelo CDS-PP, sobre a reestruturação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) a recordar que “a reestruturação do SEF consta do programa do Governo e antes dele já estava no programa eleitoral do Partido Socialista”.
O cidadão ucraniano “Ihor Homeniuk morreu nas condições dramáticas que conhecemos em 12 de março de 2020, meses depois de aqueles programas, em 2019, se terem tornado públicos”, por isso não será esta “trágica morte” a “definir a mudança no acolhimento de migrantes e na investigação da criminalidade associada às migrações”, sustentou a deputada, que admitiu que “o modo como Ihor morreu não deve ser esquecido”.
Ora, “a ideia de que o conceito de segurança interna precisa de ser revisitado não é de hoje”, até porque “no mundo de hoje nenhuma segurança pode ser só interna”, defendeu Cláudia Santos, que disse que “hoje talvez se deva falar sobretudo em segurança humana”.
E explicou que “o conceito de segurança humana está centrado na pessoa e no bem-estar dos povos. Com este conceito de segurança, as questões propostas pelos migrantes são encaradas sob um novo prisma: cada país faz escolhas sobre os migrantes que pode acolher”.
“E o acolhimento de migrantes não deve ser enquadrado num contexto policial. Uma coisa é o acolhimento de migrantes, outra coisa é a criminalidade parasitária das migrações e dos limites que cada Estado lhes define. Essa criminalidade é assunto de polícia e deve ser tratada como criminalidade muito grave. Os migrantes merecem uma resposta. Os criminosos que se aproveitam das fragilidades dos migrantes merecem outra resposta”, asseverou.
Migrantes não sabem se serão tratados como vítimas ou criminosos
Cláudia Santos esclareceu que estas mudanças têm de ser feitas principalmente por causa do “medo que os migrantes têm da polícia e o receio de serem tratados como criminosos”. Isto “torna-os mais vulneráveis à exploração e dificulta a descoberta dos crimes de que são vítimas. Por isso, a estrutura que os tenha como interlocutores não deve ser também uma estrutura policial”, vincou.
“Uma das maiores perplexidades do tráfico de seres humanos é a dificuldade da sua deteção”, revelou a parlamentar do PS, que disse que, apesar de haver “dezenas de milhar de pessoas traficadas no mundo”, há “muito mais processos por tráfico de droga do que por tráfico de seres humanos”. A razão para tal acontecer prende-se com o facto de “as vítimas do tráfico de seres humanos não quererem ser encontradas”, sobretudo porque “o sistema favorece a confusão sobre aquele que é o seu papel e, por isso, têm receio da polícia”. “Não sabem se serão tratadas como vítimas ou como criminosos”, alertou.
A deputada assegurou que “as vítimas só denunciarão o crime de tráfico de pessoas se conseguirmos combater as armas utilizadas contra elas pelos seus agressores. E uma dessas armas é precisamente o medo da polícia”. “Só conseguiremos ajudar estas pessoas e combater o tráfico de seres humanos se elas compreenderem, primeiro, que são vítimas de crimes graves e não apenas vítimas do infortúnio”, acrescentou.
“Depois estas vítimas precisam de saber que não serão elas próprias castigadas e que não precisam de ter medo da polícia, porque há uma estrutura para as acolher ou proteger que é diferente daquela estrutura policial que investigará os criminosos permitindo a sua punição”, salientou.
Cláudia Santos deixou depois uma garantia: “A sobreposição de competências da PJ [Polícia Judiciária] e do SEF prejudica a investigação”. E adiantou que “a dispersão de competências na investigação foi identificada por magistrados e elementos das próprias polícias num estudo essencial publicado em Portugal sobre o tráfico de seres humanos. Nesse estudo afirma-se, de modo inequívoco, que a atribuição de competências à PJ e ao SEF determina a ‘confusão que ocorre no terreno com a sobreposição de investigações’”.
Assim, pode-se concluir que “são necessárias alterações a este modelo de investigação”, afiançou.
“Afastámos a aceitação da escravatura das nossas leis, mas não conseguimos ainda afastá-la da nossa realidade”, já que “há dezenas de milhões de pessoas vítimas de escravatura moderna e muitas foram vítimas de tráfico”, lamentou a deputada do PS.
Dirigindo-se a todas as bancadas, Cláudia Santos reiterou que “as vítimas ‘coisificadas’ do crime de tráfico de seres humanos estão entre nós e, por isso, dependerá sobretudo de nós que passem a ser tratadas como aquilo que são: não como coisas, não como criminosos, apenas como pessoas”.